LEMBRANÇAS

Quem quer entrar no PAU? – Por Mouzar Benedito

Lembranças de uma daquelas assembleias maravilhosas no Estádio da Vila Euclides, quando os metalúrgicos do ABC, liderados pelo Lula, puseram pra quebrar

Lula discursa em greve de metalúrgicos do ABC Paulista, em maio de 1979.Créditos: Wikipedia
Escrito en OPINIÃO el

Por motivos que não vem ao caso citar aqui, procurei os arquivos do jornal “Em Tempo”, um dos mais combativos contra a ditadura. Colaborei nele com o pseudônimo Rezende Valadares Netto (na maioria das vezes apenas com as iniciais RVN) e às vezes outros nomes ou outras iniciais. Não vem ao caso também explicar o porquê do pseudônimo, é uma história longa. Posso garantir que não foi por medo, embora o jornal tenha sido bastante ameaçado pela ditadura que, depois da publicação de uma lista de policiais e militares torturadores, chegou a explodir uma sucursal e queimar outra, em Curitiba e Belo Horizonte (a sede era em São Paulo). Sim, eu era meio irresponsável.

Nesse, que foi um dos muitos jornais alternativos de que participei, tinha a função de fazer matérias sobre presos políticos e escrever notas ou pequenas matérias para uma seção chamada “Gerais”, que ocupava duas páginas.

Gostava muito do jornal e das coisas que publicava nele, mas tinha uns dois ou três componentes da equipe que de vez em quando me irritavam. Um deles reclamava que a tal seção “Gerais” tinha muita coisa de humor, que ele chamava de piadas: “Bah... Jornal de esquerda não publica piadas”. Cheguei a perguntar pra ele se alguma daquilo que ele chamava de “piada” era de direita ou favorável a ela. Não respondeu, mas continuou sendo contra o humor, o que eu achava muito contraditório, pois a ditadura odiava o humor e a gente mantendo isso a irritava demais. Basta lembrar o Pasquim, que incomodava muito os militares e seus aliados.

Um dia, com o saco cheio disso, resolvi publicar uma materiazinha para provocar o pretenso marxista-leninista radical anti-humor (o que não é uma característica dos marxistas-leninistas – era só ele mesmo).
Brinquei com um amigo: para um cara desses, havia duas justificativas para sacanear alguém: se fosse para sacanear pobre, era só dizer que ele era um lúmpen; se fosse para gente de classe média, era só dizer que o cara era anarquista. Então pus em prática uma brincadeira anarquista que fazia com amigos e resolvi colocar no jornal.

Era um 2 de maio, em 1979, um dia depois do 1º de Maio em que teve uma daquelas assembleias maravilhosas no Estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, quando os metalúrgicos do ABC, liderados pelo Lula, puseram pra quebrar. Eu estava lá. Nem só os metalúrgicos iam às assembleias naquele estádio, pois dava gosto ir e eu ia como jornalista, mas também como simpatizante da causa. Durante a assembleia naquele dia, com umas cem mil pessoas presentes, chegou a notícia de que o torturador Sérgio Paranhos Fleury morreu supostamente num acidente, ao cair bêbado de um iate em Ilhabela. Houve quem dissesse que ele não caiu: foi jogado já morto. Queima de arquivo, pois a ditadura começava a balançar. Vibração geral.

A manchete do “Em Tempo” (datado de 3 de maio) foi “FLEURY: O CARRASCO ESCAPOU DA JUSTIÇA”. O jornal foi apreendido pela polícia, por isso, mas já tinha um monte circulando quando o prenderam. E na página 2, nas “Gerais”, publiquei meu manifesto, que – como podem imaginar – causou uma indignação em alguns... Ah, tem gente hoje que não sabe o que era a Arena, citada nele: era a sigla da Aliança Renovadora Nacional, partido da ditadura. Naquele tampo só havia dois partidos: a dita Arena, do governo, e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), que fazia uma oposição consentida, mas tinha algumas pessoas que às vezes levavam a sério sua função. E tem também quem não sabe o que foi a TFP. Era uma organização de extrema direita monarquista, católica, chamada Sociedade Brasileira de Tradição, Família e Propriedade.

PAU: Um partido que deita e rola

Com a perspectiva de reformas políticas deixadas transparecer pelo governo – como já ocorreu tantas outras vezes – e também pelo anunciado fim do bipartidarismo, a turma do pensamento positivo (só isso pode justificar as esperanças dos eternos otimistas) se assanhou novamente. Vários partidos trabalhistas (o dos trabalhistas que não trabalham, o dos trabalhadores apolíticos, o dos neogetulistas, o da carta-testamento etc.), um ou dois socialistas, um nacionalista, um municipalista, outros como o democrático-social, o progressista (vulgo ademarista) e até um do povo brasileiro (vulgo Arena), estão aí, em fase de formação que nunca será consumada, mas todos achando que o poder cairá inevitavelmente em suas mãos.

A primeira coisa a lembrar é que quem está anunciando as reformas políticas são porta-vozes (ou devem ser) dos militares. E a reforma para os militares tem um significado semelhante ao da aposentadoria. Então, o máximo que se pode esperar é uma aposentadoria (aí já se assanham novamente: remunerada???) dos políticos.

O único partido que sobreviverá ao pega-pra-capar que vem aí é o PAU (Partido Anarquista Unificado), que está apoiado nas altas esferas, que tem como palavra de ordem uma frase de ordem: “abaixo as palavras de ordem”. E que está sendo formado sem nenhum congresso, debate ou reunião. Inicialmente, além de partido político, funcionará também como time de futebol e clube de bocha.

Os estatutos são simples, até um arenista pode decorar. “Artigo Único: O PAU – Partido Anarquista Unificado – não tem estatutos, regras ou regulamentos. Parágrafo Único: A violação desse estatuto será punida com caras feias e cuspidas no infrator, que será despojado de sua carteirinha de anarquista”.

Já estão traçados alguns planos do PAU, como o de roubar bengalas de cegos, muletas de aleijados, dentaduras de velhos e óculos também de velhos. Na área comportamental, o PAU fornecerá certificados de divórcio aos membros de famílias bem-casadas, principalmente oriundos da TFP e da Tradicional Família Mineira. Em discussão, está a proposta da Ala Palestina do PAU, de roubar gorrinhos de judeus em entrada de sinagoga e também a contraposição judaica de jogar tachinhas no chão, perto de árabes maometanos, todos os dias às seis horas da tarde.

Aos interessados, a direção do partido informa que quem entrar no PAU não pode vacilar, pois o PAU não é para brincadeiras (ou talvez seja). Se você estiver apto, ou apta, não perca tempo: o PAU está à sua espera, ansioso, pronto para entrar em ação, com sua colaboração. Mexa-se.

Rezende Valadares Netto.

PS: não sei porque não incluí no manifesto algumas características do PAU, além da citada, de ser “apoiado nas altas esferas” (será que alguém tem dúvida sobre que altas esferas são essas?). Eis algumas características dele:

- O PAU tem tendência para a esquerda.

- O PAU é um rompedor de estruturas.

- O PAU alarga os “horizontes”.

- O PAU tem educação: levanta-se para as moças e baixa a cabeça para as velhas.

Atenção: não me venham com condenações por ser politicamente incorreto. Naquele tempo não tinha nada disso. Hoje tem, mas não gosto.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.

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