“Talvez seja por isso que a direita populista irrita tanto a esquerda: os direitistas estão roubando o gozo da esquerda.”
O filósofo esloveno Slavoj Zizek é um capítulo à parte na história da psicanálise. Filósofo marxista, hegeliano e autoproclamado stalinista ( de maneira irônica), é um dos fundadores da chamada “Escola de Lhubliana”, capital do pequeno país Eslovênia e se autoproclama psicanalista, mesmo sem exercer o ofício, ainda que neste livro em questão se assuma como analisante e pela primeira vez em sua vasta obra trate de questões idiossincráticas do movimento lacaniano, principalmente pela referência generosa ao psicanalista brasileiro Gabriel Tupinambá. Aliás, o mote da obra a ser resenhada aqui, “Mais Gozar”,Zizek trata da potência libidinal e fantasistica daquilo que nossa sociedade constrói e chama de “realidade”.
A partir de Marx, Hegel, Freud e Lacan. “Mais-gozar” é uma expressão que Lacan cunha nas cercanias de maio de 1968 em sua parceria com Althousser, e se refere ao conceito marxista de “mais valia “em mais um capítulo da vasta história das interfaces da psicanálise com as ciências sociais, e mais especificamente com o marxismo e o capitalismo. Para quem já está familiarizado com a obra de Zizek, o livro é recheado de intuições, referências caóticas, piadas, exemplos, autoplágios e conceitos já trabalhados em outros livros, como se ele escrevesse sempre o mesmo livro, porém, como toda a repetição, sempre sai algo diferente.
A novidade aqui é que Zizek assume seu sinthoma na introdução onde discute essas vicissitudes de sua metodologia de escrita, e talvez isso esteja conectado com a outra novidade que é se imbuir mais como analisando e participante do movimento psicanalítico, retornando a suas origens, já que foi orientando de Jacques Alan-Miller, genro e herdeiro oficial dos seminários de Lacan; Contudo essa participação no movimento milleriano seja mais crítica, como é característica do pensamento inquieto e dialético de Zizek.
A crítica aqui no caso refere-se ao livro que ele prefacia “O desejo da psicanálise” de Gabriel Tupinambá, que trata de problemas da psicanálise contemporânea, como a circulação dos discursos na elitização e gentrificação da formação dos psicanalistas, dos problemas da psicanálise lacaniana se assumir como “weltanshaung” ao ser convidada constantemente para opinar sobre quase todos os assuntos da vida cotidiana (que ironicamente é uma das características marcantes da obra de Zizek).
No intenso caminho de mais de 500 páginas em que se debruça sobre a mais valia e o mais gozar, as intersecções do capitalismo e da psicanálise a partir desse valor invisível e intangível representado por esse excedente extraído da venda da força de trabalho vs o aumento da produção. Esse valor “plus” que é produzido entre a venda da força de trabalho e a produção é transcrito para a psicanálise como um gozo que transita entre “desejo, necessidade, vontade” que diz a música dos Titãs. Esse valor oscila entre a captura do Grande Outro (objeto A) e condensação do objeto a, o “outrinho”. Na polifonia conceitual do livro Zizek já produz um exemplo no início, ao falar das catástrofes climáticas e sociais das primeiras décadas do século XXI.
“A nossa noção usual de catástrofe é que ela acontece quando a intrusão de algum evento brutal – terremoto, guerra… – arruína a ficção simbólica que é a nossa realidade; mas, talvez, não haja menos catástrofe quando a realidade permanece como é e apenas a ficção simbólica que sustenta a nossa abordagem da realidade se dissolve. Tomemos o caso da sexualidade, uma vez que em nenhum lugar as ficções desempenham um papel mais crucial do que na sexualidade. Num comentário interessante sobre o papel do consentimento nas relações sexuais, Eva Wiseman refere-se a um momento em The butterfly effect [O efeito borboleta], a série de podcasts de Jon Ronson sobre pornografia na internet. No set de um filme pornô, um ator perdeu a ereção no meio da cena – para recuperá-la, ele se afastou da mulher, nua debaixo dele, pegou seu telefone e buscou Pornhub. O que me pareceu vagamente apocalíptico.” (P.12)
Zizek tenta (sem muito sucesso ) organizar o livro em três partes
Na primeira parte, Zizek foca no neoliberalismo contemporâneo, que ele descreve como uma versão reconfigurada do velho capitalismo, agora permeada pela realidade digital das fake news, ascensão da ultradireita e catástrofes climáticas inevitáveis. Ele utiliza o conceito de "mais-valia" para examinar a precarização das relações de trabalho e a exploração capitalista.
O neoliberalismo que nada mais é do que o velho capitalismo sem o verniz Keynesiano e atravessado pela realidade digital das fake news, da ascensão da ultradireita e da catástrofe climática real e inevitável. Aqui o conceito de mais valia se sobrepõe e as categorias marxianas são acopladas à psicanálise para pensar a precarização, às fake news, o capitalismo de rapina.
Na segunda parte, em parceria com Tupinambá, Zizek faz uma espécie de psicanálise da psicanálise nas contradições do movimento lacaniano como burguês e elitista ou mesmo da adoração da figura de Lacan e suas instituições em relação ao surgimento de novos movimentos sociais ou de leituras da psicanálise mais oxigenadas ou despojadas da misoginia ou da primazia da função paterna. A segunda parte do livro abre o caminho para a terceira, mais longaa e complexa, onde Zizek, pisando em ovos, pensará as questões contemporâneas de gênero e do politicamente correto, com uma boa dose de polêmica.
Zizek produz importantes insights sobre as noções de existência e crença como organizadores da vida psíquica, e entre elas está a idéia de Significante Mestre, de Lacan, que é uma espécie de substância organizadora que permeia e dá anteparo a nossa segurança ontológica. São importantes suportes de segurança ontológica noções abstratas, mas quase tangíveis, de verdade, ciência, saber, lei, ou mesmo a própria ideia de existência.
A leitura do livro é dificil mas ele apresenta chaves analíticas importantes para a compreensão do mundo contemporâneo. Então a UFRGS e a FURG, duas universidades federais, a partir da parceria de dois grupos de pesquisa e um PPG: Saúde no Território e LEXPARTE e PPG em Psicanálise, Clínica e Cultura (PPGCLIC), oferecem um curso de extensão presencial, gratuito e aberto ao público que oferece uma introdução ao pensamento de Slavoj Zizek e introduzir a obra “Mais-gozar: um guia para não perplexos”: “Como ler Zizek”.
Organização: Professor Fábio Dal Molin (FURG) , Professor, Roberto Henrique Amorim de Medeiros (UFRGS) Germano Pedroso (Filósofo, Psicanalista, Mestrando do PPGCLIC)
Início: 31/03/ 2025 Fim: 07/07/ 2025. segundas-feiras das 14 às 16 h (quatro créditos, dois são para leituras)
Local: UFRGS, Instituto de Psicologia, Serviço Social Saúde e Comunicação Humana, sala a confirmar
Certificado de 60 horas de extensão pela FURG
Informações e inscrições até 31 de março pelo mail lexpartelab@gmail.com
Informações pelo instagram @comolerzizek
Cronograna
Aula 1 ( ): Apresentação do grupo, debate coletivo da proposta de cronograma
Aulas 2-3 Como ler Zizek: começando pelo fim.
Texto: “Abertura: vivendo no mundo de cabeça para baixo”
Zizek, Slavoj, Mais Gozar, um guia para os não perplexos. Rio de Janeiro, Vozes, 2024
Aula 4-5-6 ( ) Como ler Lacan
Video: “A realidade do virtual” de Slavoj Zizek
Texto: Zizek, Slavoj Como ler Lacan. Rio de Janeiro, Zahar, 2010
Aula 7-8 ( ) Cinema: a mais perversa das artes
Fillme: “O guia do pervertido sobre cinema” de Sophie Fiennes
Texto: Vikings, Solaris, Katla: o Grande Outro e suas Vicissitudes
Aula 9-10 ( ) A ideologia lacaniana
Filme: “O guia do pervertido sobre ideologia” de Sophie Fiennes
Texto: Uma diferença não-binária? Psicanálise, política e filosofia
Zizek, Slavoj, Mais Gozar, um guia para os não perplexos. Rio de Janeiro, Vozes, 2024
Aula 11 -12 Vivendo no fim dos tempos
Texto: Introdução do livro “Vivendo no fim dos tempos”.
ZIZEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo, Boitempo, 2014
Aulas 13-14 Lacan com Hegel e Marx
Texto” Onde está a cisão?:Marx, capitalismo e Ecologia
Livro:Zizek, Slavoj, Mais Gozar, um guia para os não perplexos. Rio de Janeiro, Vozes, 2024
Aula 15: Considerações finais e avaliação do processo