- Ela é uma replicante, certo?
- Estou impressionado. Quantas perguntas são necessárias para identificar um deles
- 20 ou 30, cruzando os dados
- No caso de Rachel levou mais de 100
- Ela não sabe
- Mas acho que começa a suspeitar
- Suspeitar? como pode não saber o que é?
- A meta da Tyrrel é o comércio, nosso lema é “mais humano que um humano”, Rachel não passa de um experimento, nada mais. Começamos a identificar neles uma estranha obsessão, afinal, não tem experiência emocional e apenas alguns anos para armazenar essas experiências que você e eu temos como certas. Se lhes dermos um passado, temos um ambiente aconchegante para as suas emoções, e , consequentemente, podemos controlá-las melhor.
- Memórias! Você está falando de memórias!!!! (Cena do filme “Blade Runner, de Ridley Scott)
Em 2003, Neide Melo, estudante de engenharia, técnica em informática, noiva e prestes a casar, viajou para uma cidade do ABC paulista para uma entrevista de emprego, onde encontrou Thiago, candidato a mesma vaga. De repente, acordou em um hospital, sem saber o que lhe havia acontecido e estranhou que Thiago, uma pessoa que recém conhecera, estava ao seu lado, porém, não era seu concorrente na seleção, mas seu marido, e o ano não era 2003, mas 2017. A primeira hipótese de Neide é que teria tido um acidente de carro em 2003 e um apagão repentino, e metade disso é verdade, o apagão foi repentino e curto, mas foi devido a um AVC ocorrido durante um procedimento cirúrgico simples em 2017! O apagão consumiu 14 anos inteiros de sua vida, o que inclui desmanchar o noivado, casar com o antigo concorrente do emprego, mudar de profissão, e todas as lembranças possíveis da vida neste intervalo, sem nenhum vestígio emocional ou memória corporal.
Neide foi obrigada a ler, ver fotos, vídeos e mensagens para ter que aprender sobre como construiu sua história ao longo dos anos, e teve que ser reapresentada a suas amigas e amigos, colegas de trabalho, vizinhos, às novas tecnologias e mudanças políticas e sociais. Em 2003 não havia TV de LED, Smartphones, bluetooth ou internet wi fi, Lula estava em seu primeiro mandato e o mundo não vivia o atual estado de digitalização e divisão política. O Orkut recém começava. E Neide, no seu ponto de vista, teve que experimentar a angústia de viver em uma casa que não reconhecia como sua, dormir na mesma cama com um homem que não era seu marido e conviver com uma filha que não era sua. Em contrapartida, todas as outras pessoas também tiveram que lidar com o fato de alguém tão querida olhar para elas com indiferença e até mesmo medo.
A história de Neide é narrada no episódio “Apagão” da Rádio Novelo
Chama atenção nessa história que, ao longo do processo, sem nenhum avanço na recuperação de suas lembranças, Neide chegou a querer fugir para outra cidade, e até mesmo tentar suicídio, e isso é compreensível, afinal, nossas memórias não são meros arquivos de um computador com informações. Elas contêm em si a nossa própria noção de realidade que formamos com sentimentos, percepções, outras memórias, ações, interações que formamos ao longo da existência. A realidade está formada dentro de nós e a vamos atualizando na medida em que vamos vivendo.
Se não fosse assim cada vez que encontramos uma pessoa nova veríamos raios brancos que iriam aos poucos assumindo um formato. A ideia de pessoa já existe em nós e apenas é atualizada com aquilo que a faz singular. Nossa própria subjetividade repousa em uma virtualidade que nos pre-existe e transcende nossa individualidade. Antes mesmo de nascermos já somos imaginados, falados, sonhados, temos nome, histórias, e boa parte de nossas memórias da nossa infância não são nossas, nos são implantadas. Todo mundo sabe contar a história do dia que nasceu, da primeira casa em que morou ou seu primeiro passo. Mas raríssimas pessoas são capazes de lembrar mesmo, e essas “lembranças” nos são inseridas pelas nossas e nossos cuidadores, amigues, primes, e isso vai aos poucos sendo inserido em nossa realidade psíquica até que são transformadas em memórias, e nos agarramos a elas como se fossem nossas, o que nos define ontologicamente.
Em “Blade Runner”, “Blade Runner 2049” filmes de Riddley Scott e Dennis Villeneuve e “Andróides sonham com ovelhas elétricas” De Phillip K, Dick são apresentados seres sintéticos humanóides produzidos por biotecnologia e cujo projeto inicial contempla a mimetização da aparência e da inteligência humanas. Para que o cérebro dessas máquinas pudesse ser funcional e executar as tarefas humanas, surgiu a necessidade de simular a nossa própria existência: nascimento, infância, educação... Do contrário uma vida útil de apenas 4 anos seria insuportável.
Então a engenharia genética robótica da Tyrrel Corporation desenvolveu a tecnologia das memórias implantadas, que avançou na medida que seus programadores desenvolviam a perfeição imperfeita das memórias humanas, carregadas de viés, emoção e plasticidade. No cinema, tanto a obra de Scott de 1982 quanto a de Villeneuve de 2017 (olhem que coincidência) tem como disparador o tema das memórias implantadas. No primeiro filme os chamados “Replicantes” buscam a cura para suas vidas efêmeras, contaminados pela humanidade de seus implantes, daí o icônico discurso de Roy Batty (Rutger Hauer) na cena final
“Eu vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque em chamas ao largo de Órion. Eu vi raios-c brilharem na escuridão próximos ao Portão de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer”.
Em “Blade Runner 2049” o andróide Joe vive uma vida de classe média, sendo inclusive casado com uma inteligência artificial, até desconfiar de sua possível origem: ser o filho de Deckard e Rachel de “Blade Runner”, a primeira criança gerada por dois andróides, ou seja, um humano. Suas suspeitas aumentam quando resolve verificar se uma de suas lembranças implantadas é verdadeira: quando criança, Joe teria vivido em um orfanato, e escondeu um cavalo de brinquedo dentro do forno de uma fábrica. Joe viaja até o local e encontra o cavalo exatamente onde o havia deixado. No fim do filme, a esperança de não ser um andróide nascido adulto e ser uma criança gerada “naturalmente” é frustrada. De maneira considerada ilegal, Joe recebeu uma memória verdadeira de outra pessoa, sendo uma espécie de guardião vivo de um segredo. Da mesma maneira que Roy Batty, Joe experimenta o vazio e a angústia de descobri que sua vida inteira, de memórias que experimentou com reais, como sua própria essência, não são suas.
Pois a Neide coube experimentar o horror de um processo inverso: seus amigos e amigas, sua família, toda a ecologia cognitiva no seu entorno conspiraram para que ela aceitasse memórias e experiências e uma identidade que não eram dela, e que ela não era minimamente capaz de reconhecer. Tanto Neide quanto sua filha passam por um processo psicoterapêutico cujo objetivo é restabelecer suas vidas antigas, o que é absolutamente impossível. Ela está aprendendo uma nova relação com sua filha e com seu marido, porém ela se imagina como alguém que viveu 14 anos atrás, e assim é vista por outras pessoas. Até a adoção de um cachorro foi usada como recurso, como a possibilidade de um novo vínculo da família.
Não é possível eu pensar como eu atenderia um caso como esse, mas aqui, no mundo virtual da escrita onde, no fim, se lança mensagens a um Outro hipotético, eu ouso fazer um questionamento que não consta no podcast (e não li o livro que Neide publicou): ninguém percebeu que, em uma patologia tão grave, aleatória e cujo diagnóstico é tão hopotético, o recorte temporal do lapso é extremamente preciso? O apagão de Neide não ocorreu exatamente no instante em que conheceu seu atual marido, e onde essa nova vida, inteiramente deletada, teve seu início?
O relato do podcast é absolutamente assustador e violento, afinal, Neide foi, e ainda está sendo obrigada a aceitar uma vida que não é sua.
Teria ela o direito de recusar?
Deixo aqui essa pergunta,
Fábio Dal Molin, psicólogo, psicanalista, professor da FURG e pós-doutorando do PPG em Psicanálise, Clínica e Cultura da UFRGS. Contato @b.dalmolin