Toda profissão tem lá suas verdades. Um dia alguém lança a frase e ela gruda como um refrão de Marisa Monte. No jornalismo de televisão muitos já tiveram pesadelos com um chefe esbaforido a trovejar com um chicote na mão direita e um cronômetro na canhota: “Matéria boa é a que vai ao ar!!!”
Quase sempre com pouquíssima delicadeza, o que se tenta explicar é que pouco importa se a reportagem tem imagens maravilhosas, a entrevista reveladora ou um texto brilhante. Tudo isso só terá algum valor se a matéria estiver pronta na hora do jornal.
Se a gente quiser ler de outra maneira, dá para dizer que existem dois tipos de jornalistas de TV: os pontuais e os ex-jornalistas. O horário é tão importante, que na redação, ele ganha outro nome: dead line. Os mais dramáticos traduzem como linha da morte.
Assim como as notícias, o jornalismo muda. O de televisão ficou muito mais ágil com o reforço da tecnologia. Hoje a mesma câmera que grava as imagens, gera as cenas para a redação onde será feita a edição. Isso serve para uma entrevista na praça da Sé ou um documentário na Ucrânia.
O que não mudou foi a frase carregada de urgência. No fim dos anos 1980, as equipes gravavam a reportagem em fitas de vídeo e levavam para a emissora. Um motorista habilidoso e “pé de chumbo” era decisivo. Se a gravação se estendia, mandávamos a primeira parte num táxi para adiantar a edição.
O trânsito ruim ficou horroroso, surgia o motoqueiro. Jovens e destemidos, eles pegavam a fita da reportagem com a equipe, driblavam o congestionamento e garantiam a notícia na hora certa. Quando o repórter ainda precisava gravar algo na redação, a saída era subir na garupa e cruzar a cidade em duas rodas.
O serviço de entrega ainda não existia como é hoje, delivery era uma palavra desconhecida , mas Toninho, Borracheiro, “Tudo Junto” e “Calabresa” venciam o relógio.
O repórter pegava uma ficha telefônica e ligava do orelhão para a chefia de reportagem.
- O motoca saiu agora.
Funcionava dentro da cidade, mas... e nas viagens? Em locais distantes? Eu era repórter nos anos 1990 e um surto de cólera assustou o país. Lá fomos nós para a fronteira do Brasil com a Colômbia.
Do lado de cá, Tabatinga. Do lado de lá, Letícia. Gravar as imagens e entrevistas era o mais fácil, o desafio era o material chegar à redação, em São Paulo, a 3.300 quilômetros de distância.
No aeroporto, procurávamos algum passageiro ou passageira que inspirasse confiança. Talvez uma família. Quem sabe um policial? A gente respirava fundo e pedia.
- Será que você leva essa fita até o aeroporto de Manaus? Lá um mensageiro da TV te encontra.
Anotávamos os dados da pessoa, a cor da roupa, o número do vôo e avisávamos. Um funcionário da TV local esperava no desembarque, vestido com uma camiseta da emissora e uma daquelas plaquinhas: “Fulano de tal, estou aqui”. Da TV de Manaus, a gravação era gerada por satélite para São Paulo
Aconteceu na floresta Amazônica e se repetiu no interior de Minas Gerais, Mato Grosso, Roraima. Uma pessoa desconhecida levando algo tão importante e a gente ali, na dependência daquele mensageiro generoso.
Todas as experiências deram certo, nunca perdemos uma reportagem, ou como também se fala nas redações: jamais “a matéria caiu”.
A exceção se deu num fim de tarde, na porta de uma delegacia paulistana. Pressionado pelo dead line, o repórter terminou a gravação, viu um motoqueiro parado e disparou em direção a ele.
“Leva a fita correndo!” Ordenou, transtornado pela pressa.
O rapaz botou o capacete e, obediente, saiu acelerando.
O repórter só esqueceu de perguntar se o motoqueiro trabalhava na TV.
Até hoje a fita não apareceu.
*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, o livro foi semifinalista do prêmio Jabuti 2024.
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.