OPINIÃO

Carnaval: festa popular e engajada - Por Francisco Fernandes Ladeira

Se as diferentes manifestações culturais de origem africana são historicamente alvo de preconceitos no país, no carnaval elas têm a valorização que merecem. Mas não é só isso

Ensaio técnico da Portela, que homenageia o "rei negro" Milton Nascimento.Créditos: Instagram / Portela
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Enfim, chegou o carnaval. Sem dúvida, a festa mais popular do Brasil; também aquela que gera os mais acalorados debates. Entre os principais ataques ao carnaval, está a falaciosa concepção do reinado de Momo com um período de alienação das massas.

No entanto, ao longo do tempo, marchinhas, blocos, sambas-enredos e outras manifestações carnavalescas foram importantes instrumentos de conscientização do povo brasileiro. Se as diferentes manifestações culturais de origem africana são historicamente alvo de preconceitos no país, no carnaval elas têm a valorização que merecem. Mas não é só isso!

Ainda no século XIX, o carnaval já era uma festa que problematizava a abolição da escravatura e as disputas por terras. A luta de classes, principal contradição do capitalismo, foi exemplificada em uma marchinha de Roberto Martins e Wilson Batista: “Você conhece o pedreiro Valdemar? Faz tanta casa e não tem casa pra morar”. O (persistente) problema habitacional no Brasil também se fez ecoar nos versos “Daqui não saio, daqui ninguém me tira, onde é que eu vou morar?”.

No carnaval de 1951, “Retrato do velho”, interpretada por Francisco Alves, saudava a volta de Getúlio Vargas à presidência da República, contrariando os interesses das elites da época (qualquer semelhança com os atuais ataques ao terceiro governo Lula não é mera coincidência).

O precário abastecimento de água no Rio de Janeiro inspirou Paquito e Romeu a comporem os versos “tomara que chova três dias sem parar, a minha grande mágoa é lá em casa não ter água e eu preciso me lavar”. Décadas antes de os identitários implicarem com as letras de marchinhas, a famosa “Mulata bossa” homenageava Vera Lúcia Couto, vítima de racismo durante concurso de Miss Brasil.

No mais famoso desfile de escolas de samba do país, na Marquês de Sapucaí, são inúmeros os exemplos de engajamento social. Aliás, a própria construção do sambódromo, no governo Leonel Brizola, desafiando a oposição do poderoso Grupo Globo, já foi um ato político.

Em 1982, o Império Serrano chamava a atenção para a espetacularização do carnaval, com o clássico “Bumbum, paticumbum, prugurundum” – “uma formidável onomatopeia”, nas palavras de ninguém menos do que Carlos Drummond de Andrade. Quatro anos depois, a escola originária do Morro da Serrinha fazia uma crítica à recém-terminada ditadura militar, nos versos “Quero nosso povo bem nutrido, o país desenvolvido, quero paz e moradia. Me dá o que é meu, foram 20 anos que alguém comeu”.

No centenário da abolição da escravatura, a campeã Vila Isabel ressaltou a força de Zumbi dos Palmares e a Mangueira cantou o que a hipocrisia cotidiana insiste em esconder: apontou que o negro, apesar de livre do açoite e da senzala, está preso à miséria da favela.

Em 1989, enquanto a São Clemente, repetindo a denúncia da Império Serrano, alertava para a crescente mercantilização do carnaval, a Beija-Flor de Nilópolis escancarava as desigualdades sociais com o enredo “Ratos e urubus, larguem a minha fantasia”.

Sete anos atrás, o desfile da Paraíso do Tuiuti mostrou para o grande público os objetivos do golpe de 2016, com direito a uma ala sobre a classe média manipulada, que vestiu verde e amarelo e foi às ruas dançar em volta do pato da Fiesp para defender os interesses da elite econômica e a perda de direitos.

Nos dois carnavais antes da pandemia da Covid-19, multidões Brasil afora gritaram “Fora Bolsonaro”. Não por acaso, o “inelegível” fez uma postagem em sua conta no antigo Twitter, em que associava a principal festa popular do Brasil à pornografia. Quem não se lembra do infeliz tuite: “O que é golden shower?”.

Também nessa época, fazendo um movimento contrário ao negacionismo “politicamente incorreto” da Brasil Paralelo, a Mangueira, ao criticar a chamada “historiografia oficial”, homenageou os heróis “apagados” da história, pertencentes às minorias sociais.

Com um histórico desses, aqui relatado brevemente, não é de se estranhar os ataques da direita ao carnaval. O pseudoargumento “transgressão dos valores morais” é mera cortina de fumaça. Lembrando uma letra de Chico Buarque, para quem defende o sistema econômico vigente, os corpos pobres não podem ter direito a “alegria fugaz em uma ofegante epidemia que se chamava carnaval”; devem apenas gerar lucros para o capital. O velho Marx diria que, isso sim, é “alienação”.

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