REFLEXÕES

Um sol pra cada um: história do calor no Rio de Janeiro – Por Raphael Fagundes

A moda republicana buscava copiar o padrão europeu chegando ao absurdo para nós, habitantes do século XXI

Imagem Ilustrativa.Créditos: Agência Brasil
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Os verões no Brasil sempre influenciaram nos hábitos da população, incomodando de um lado e, por outro, promovendo novas alternativas de lazer. Durante o período colonial, foi necessário investir na construção de varandas e de toda uma área externa, como explica Leila Menezes Algranti: “O clima quente e as poucas portas e janelas que permitiam o arejamento levavam a família e demais ocupantes do domicílio para suas partes externas, tanto nas horas de lazer quanto de trabalho”.[1]

Gilberto Freyre mostra que a higiene infantil dos europeus não se adaptava ao clima tropical. Muitas crianças morriam. Foi necessário adotar a higiene indígena e africana fazendo uso de menos agasalhos e incluindo mais banhos durante o dia.[2] Sérgio Buarque de Holanda já destaca que “a sociedade colonial, forjada no século XVI, resultaria, em maior ou menor grau, de uma adaptação do mundo português ao novo meio, clima e paisagem”.[3]

No século XIX, o Brasil torna-se uma nação independente. A modernidade traz novas formas de se adaptar ao calor. “Nos meses do início do verão de 1834, um navio de três mastros chamado “Madagascar” entrou no porto do Rio de Janeiro trazendo em seu porão uma carga extremamente implausível: um lago congelado da Nova Inglaterra”.[4] O grande negócio de Frederic Tudor, conhecido como “Rei do Gelo”, fez aparecer na corte “as primeiras sorveterias que vendiam raspadinhas de diversos sabores”.[5]

Surgem também os banhos de mar. Em 1851, os missionários anglicanos Kidder e Fletcher, fazem um relato sobre as praias como um momento de lazer do carioca: “É divertido verem-se as moças e os rapazes brasileiros correndo pela praia, soltando gritos de prazer toda vez que uma onda mais pesada rola por cima de um grupo e os atira cambaleando sobre a areia”.[6]

No final do século XIX, a cerveja ganhou espaço graças aos avanços tecnológicos da refrigeração e da pausterização. Novos espaços de convivência pública surgiram e que terão seu apogeu na Belle époque, como as confeitarias, cassinos e cafés. “Havia um número crescente de inflamados abolicionistas, poetas bissextos, jornalistas e todos os tipos humanos de hábitos noturnos. Para espantar o calor e animar a conversação, bebia-se”.[7]

E por mais que a temperatura hoje possa vir a estar maior que a daqueles dias, a sensação era pior por conta dos hábitos ditos “civilizados”. A moda republicana buscava copiar o padrão europeu chegando ao absurdo para nós, habitantes do século XXI. Como “a criação de uma lei de obrigatoriedade do uso do paletó e sapatos para todas as pessoas, sem distinção, no Município Neutro”.[8]

As praias cariocas foram usadas como símbolos de libertação e provocação durante os anos de chumbo. A atriz Leila Diniz exibia sua barriga de grávida nas areias de Ipanema, um ato que acabou se tornando símbolo da libertação da mulher brasileira. E, em novembro de 1979, Fernando Gabeira veste uma “exígua sunga de crochê em tons verde e roxo” que, na verdade, era “uma tanga emprestada pela prima dele, a jornalista Leda Nagle”. Ele afirmava que “desta forma insólita e provocativa” estava lutando “contra o machismo e contra todos os preconceitos”.[9]

Um fato curioso. Em 1955, o chefe de polícia do Rio de Janeiro, o coronel Geraldo de Menezes Cortes, mostrou sua veia autoritária e mandou proibir o filme “Rio, 40 graus”, do diretor Nelson Pereira dos Santos. O filme tratava de temas delicados que desagradavam as autoridades, como a desigualdade social. Porém, o argumento do comandante foi o seguinte: “Até o título do filme é mentiroso”. Isso porque de acordo com o anuário meteorológico nunca havia feito 40°C no Rio de Janeiro, “o máximo era de 39,6”.[10]

Se àquela época a desculpa já era ridícula, hoje seria ainda pior, já que a máxima registrada nesse verão já atingiu os 44°C. Praias e parques estão extremamente entupidos e, em muitos lugares, faltam energia e água.

A tecnologia criou novas formas de suportar o calor, porém algumas delas, como o ar-condicionado, contribuem ainda mais para o aquecimento global. É como explica Pierre Charbonnier, “seja em escala local ou global, somos dependentes de um conjunto de pressões ecológicas que infringem os princípios mais básicos da sustentabilidade”.[11] A liberdade do capital em explorar ilimitadamente impede o exercício da liberdade das pessoas. O aquecimento global promovido pela política do crescimento econômico a qualquer custo força as pessoas a viverem em uma realidade adversa e hostil. Se antes foi possível para o estrangeiro adaptar-se ao clima tropical aprendendo com os saberes indígenas, agora será necessário acumular todos os saberes necessários (não apenas indígenas, mas africanos e europeus) para combater o capitalismo e promover uma transformação radical, já que a produção capitalista, como dizia o velho Marx “perturba o metabolismo entre o homem e a terra”.[12] A natureza, “esse organismo vivo, inteligente, ofendido com a nossa grosseria, pode apagar a gente, e nós não faremos falta nenhuma”.[13] Não dá mais para se adaptar, é indispensável revolucionar!

 

[1] ALGRANTI, L. Famílias e vida doméstica. In: MELLO E SOUZA, L. (org.) História da vida privada no Brasil 1. São Paulo: Cia das letras, 1997, p. 94.

[2] FREYRE, G. Casa-Grande e senzala. 36 Ed. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 365.

[3] VAINFAS, R. A tessitura do sincretismo: mediadores e mesclas culturais. In: FRAGOSO, J e GOUVÊA, M. (orgs.) O Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 279.

[4] JOHNSON, S. Como chegamos até aqui. Rio de Janeiro: Zahar, 2015, p. 42.

[5] ALENCASTRO, L. F. Vida privada e ordem privada no Império. In: _____. (org.). História da vida privada no Brasil 2. São Paulo: Cia das letras, 1997, p. 48.

[6] DEL PRIORE, M. Vício, pecado ou direito? In: RHBN, ano 8, N. 86, FEV. 2013, p. 23-24.

[7] MARQUES, T. C. A cerveja e a cidade do Rio de Janeiro. Brasília: EdUNB, 2014, p. 45.

[8] SEVCENKO, N. Literatura como missão. São Paulo: Cia das letras, 2003, p. 46.

[9] SCARRONE, M. O que é isso, companheiro?. In: RHBN, ano 4, N. 40, Jan. 2009, p. 33.

[10] Almanaque. In: RHBN, ano 7, N. 84, set. 2012, p. 84.

[11] CHARBONNIER, P. Abundância e liberdade. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 19.

[12] Apud. Id., p. 200.

[13] KRENAK e MAIA apud COSTA, Zé Pedro. Uma história das florestas brasileiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2022, p. 88.

 *Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.

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