Bola Hércules de couro laranja, 32 gomos. Stênio, 9 anos, hesitou em levar o presente pra rolar no asfalto oleoso e áspero da rua do Tijolo, no bairro da Piedade. “Guarda no armário”, aconselhou Stela.
Stênio concordou com a mãe. Gramado fofo e bem verde, isso sim era o que a pelota lustrosa merecia. Mas os amigos insistiram e Marcilio, o pai, decidiu pela família. “Filho, dei pra você jogar. Vai lá.” Stênio desceu quicando a bola e logo dois times se formaram.
A pelota já estava ralada e manchada, quando o pai explicou o presente fora de hora: o dinheiro vinha das gorjetas no restaurante em que trabalhava de terça a domingo.
Surgiram outras surpresas. Boneca Suzy para a irmã e Jovem Cientista para o mano mais velho.
No restaurante Filé Dourado, Marcílio não detalhava receitas e nem sugeria coquetéis à toa. Antes do paletó branco e da gravata borboleta, batalhou como faxineiro, lavador de pratos, ajudante de cozinha e só então pôde equilibrar copos e pratos nas bandejas.
Em casa, Marcílio silenciava a novela e saciava a curiosidade de Stela e dos três filhos.
- Alguém pediu para devolver o prato, pai?
- Aquele moço que sempre reclama do filé tava mais feliz?
- E o que resmunga com a conta, deu as caras?
- Marcílio, o seu Domingos, o da gorjeta, tava de bom humor?
Marcílio contava aventuras da vida real em detalhes. Como num filme, a família “via” o marido e pai puxar a cadeira para a senhorita e o cavalheiro e anotar os pedidos com a letra firme e bem desenhada. Depois, “assistiam” ao Marcílio entregar os pedidos na boqueta - aquela abertura arqueada que comunica o salão com a cozinha.
Um dia, justo na hora de anotar o Supremo de Frango de seu Antenor e madame Cecília, a caneta falhou. Para não atrasar, guardou na memória, enquanto distribuía os guardanapos de pano e o couvert. Testou mesas maiores, de 6 e até 8 lugares. Nunca mais usou o bloco.
Quanto mais desafiava os neurônios, mais facilidade tinha para guardar. “Memória de Mamute”, brincavam os colegas.
Num dia antigo, bem antigo. Marcílio não foi trabalhar, na manhã seguinte também não. À noite, a novela foi o único som na sala.
Marcílio perdera as bandejas, as gravatas borboleta e as histórias. O Filé Dourado ia dar passagem a um viaduto.
Stela vendeu bolos, costurou, deu aula particular. A vida seguiu e as crianças cresceram.
Marcílio se aposentou como vigia noturno no mesmo ano em que Stênio começou a trabalhar numa grande emissora de TV. A missão era simples e, ao mesmo tempo, crucial. Cabia a Stênio ligar para o elenco da novela, avisar horários de gravação e mais: enviar os capítulos escritos para atores e atrizes.
Não havia celular, muito menos computador, mas Stênio tinha a memória afiada e quando não conseguia falar escrevia bilhetes com a mesma letra bem desenhada aprendida na infância
Em pouco tempo Stênio era admirado na empresa. Quando o motorista adoeceu e não pôde entregar os capítulos, Stênio pegou a própria moto e garantiu o serviço. Outra vez localizou uma atriz avoada, que descansava num hotel-fazenda com o namorado.
Um amigo, galã estrelado, chamou Stênio para jantar. Regalaram-se com chopes e galetos. A conta foi paga em dinheiro vivo pelo ator.
Nesse momento, em gesto surpreendente, Stênio, pegou duas notas de cem cruzeiros do bolo de dinheiro do amigo e colocou em cima da mesa triplicando a gorjeta. O amigo arregalou os olhos, mas a fila de fãs em busca de um autógrafo e o sorriso largo do garçom transformariam qualquer reação em vexame.
Na saída, o artista exigiu explicação.
- Não entendi, Stênio.
- Nem vai entender. Você lá sabe o que é ter pai garçom?
A conversa foi interrompida por um assobio em ritmo de samba. Era o garçom a caminho do ponto ônibus, na noite morna do Leblon.
Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, livro semifinalista do prêmio Jabuti 2024