Em 2006, a diretora belga Chantal Akerman lançou o filme Là-bas, um documentário/filme-diário que acompanha um mês de viagem da diretora a Tel Aviv, em Israel. Akerman, que é judia, passa a maior parte do filme dentro de um apartamento, olhando pela janela para o lado de fora, apavorada de sair na cidade, refletindo sobre estar naquele espaço como se não estivesse realmente lá, como se fosse uma observadora ausente na janela. Là-bas poderia ser identificado como apolítico, mas apenas se fizermos uma ideia muito limitada de como a política aparece no cinema. Mesmo que seus comentários sobre as tensões locais sejam superficiais e até desinteressados (para além do medo de sair na rua), a sua apatia revela uma quebra do projeto sionista.
Se um país justifica a si mesmo, e as suas violências coloniais, na promessa de um lar para todo o povo judeu, a explícita incapacidade de Akerman de se fazer presente ali, a sua ansiedade em voltar para casa, na Bélgica, e a sua explanação de que ela não consegue imaginar a si mesma crescendo naquele lugar revelam essa promessa como mero artifício político. Não há nenhuma essência existencial que liga Akerman a Israel, o pertencimento dela não é garantido por sua religião ou por sua herança familiar. Sua mãe construiu uma casa na Bélgica como refugiada da Polônia. O que Akerman descobre no filme é que ela não seria menos refugiada em nenhum outro lugar, nem mesmo ali.
Com dez indicações ao Oscar, “O brutalista” (dir. Brady Corbet) é um filme sobre refugiados. László Tóth (interpretado por Adrien Brody) é um arquiteto húngaro judeu sobrevivente do Holocausto que consegue refúgio nos EUA após o fim da Segunda Guerra Mundial. Descoberto por um magnata industrialista, Van Buren (interpretado por Guy Pearce), ele recebe promessas de ser resgatado da pobreza que vive como estrangeiro refugiado de Guerra, ser reunido com sua esposa, Erzsébet (interpretada por Felicity Jones), e voltar a projetar edifícios sob a encomenda desse novo patrono. O sonho de Van Buren é a construção de um ambicioso instituto que leve o nome de sua mãe, com biblioteca, auditório de teatro, ginásio e uma capela cristã. E Tóth é o artista por encomenda, o descoberto, a realizar esse sonho.
A fundação do Estado de Israel também ocupa um papel central na trama de “O brutalista”. Acompanhamos o discurso fundacional de Ben-Gurion enquanto vemos imagens de Tóth trabalhando, reconstruindo sua vida na América. Israel se torna uma promessa e um convite estendido aos Tóth também quando sua sobrinha, que eles criaram como uma filha depois da morte de seus pais, decide se mudar para lá com o marido e questiona por que eles não fazem o mesmo. Enfim, o epílogo do filme, de maneira especialmente significativa, volta a Israel como uma ideia, um “destino” – palavra-chave na sequência final – possível para os personagens refugiados. Em grande parte, parece que o enigma interpretativo que “O brutalista” está interessado em propor para seu espectador passa por decifrar o papel que o sionismo exerce nesse texto, especialmente no epílogo.
Nesse sentido, é possível, até provável, que o filme tenha acidentalmente se desdobrado em um contexto político global em que a importância dessa definição – entre uma narrativa sionista e de oposição ao sionismo – é determinante. Isso já é o bastante para levantar acusações não completamente injustas de quem percebe no filme um discurso limitado e covarde, que se utiliza da ironia como um recurso linguístico que concede uma sutileza excessiva ao sentido da obra. Se a fuga da política em Là-bas, em 2006, já suscita algum incômodo com a falta de direta oposição à violência colonial de Israel contra a Palestina, “O brutalista”, como uma das grandes estrelas da temporada de premiações de cinema entre 2024 e 2025, é justificadamente confrontado por seus sentidos subliminares, suas sutis contradições em falas de personagens e seus elementos discursivos deixados a cargo de uma montagem simbólica.
De fato, o filme parece mais interessado na posição dos Tóth como um artista e uma escritora refugiados do que com a relação que essas figuras estabelecem (embora elas explicitamente estabeleçam certa relação) com o projeto sionista. A trajetória desses personagens nos Estados Unidos é tomada por violências – xenofóbicas, religiosas e de classe –, mas proponho não confundir tão simplesmente essa trajetória de violência com um tipo de falência do sonho americano (a esta altura um clichê do cinema hollywoodiano). Não existe sonho americano para os Tóth, em nenhum momento se acredita que a vida na América representa uma vida melhor. O filme é explícito em relação a isso: a vida desses personagens foi destruída pelo nazifascismo, pelo deslocamento, pela perda de suas casas, e não há destino que recupere as suas vidas, que desfaça a sua situação como refugiados, mesmo quando são reunidos, quando estão novamente trabalhando segundo seus talentos. Eles foram feitos, de uma vez e permanentemente, expatriados e despossuídos.
Ainda assim, a jornada desses personagens não é apenas de violência. Há um ímpeto de criação que atravessa a violência tanto quanto uma violência que atravessa esse ímpeto de criação. Com o projeto do instituto Van Buren desenhado por Tóth, o filme destina parte de seu interesse a pensar a relação do arquiteto com essa superfície que ele cria, que aos poucos se torna um tipo de obsessão criativa. O que aparece aqui é também o objetivo metalinguístico do filme: ele mesmo uma obra da forma, uma superfície produzida coletivamente a partir de uma visão autoral, dependente de uma economia de capital, mas interessado em ir além dela.
Essa correlação é sustentada por um senso de grandeza de “O brutalista”, com sua duração de 3 horas e meia, incluindo um demarcado intervalo de 15 minutos, divisão de atos e escopo temporal abrangendo toda a vida do seu personagem. A lembrança dessa sombra metalinguística na narrativa de um artista refugiado, incapaz de escapar ou proteger a sua família de um ciclo de violências, no entanto, produz resultados ambivalentes quando consideramos a sua realização por um jovem diretor estadunidense cuja trajetória tem pouco em comum com a de seu principal personagem. Desprender-se da metalinguagem seria um gesto de leitura mais generoso com o filme.
Escapulindo dessa imposição da metalinguagem, descubro no escopo ambicioso de “O brutalista” uma fruição semelhante a um romance literário. O dar-se tempo com os personagens e com suas transformações e as elipses características do gênero. É possível encontrar prazer audiovisual nessa fruição, em especial nos muitos excessos, surpresas e viradas a que o segundo ato do filme se entrega – uma distinção de ritmo também própria da literatura. Nesse sentido, gosto especialmente da escolha para a conclusão antes do epílogo, o texto repentinamente interrompido em dado ponto, circulando sem propósito por entre as imagens que ele criou através da sua duração, convidando-nos a observar de outro modo, a compreender talvez o mistério inerente a essas imagens.
O epílogo destitui parte desse mistério com explicações didáticas sobre o que acabamos de ver, mas é necessário também um cuidado de leitura para não tomar como verdade do filme a fala – acima de tudo a fala final – de uma personagem nesse último respiro da narrativa. Expondo em Veneza o trabalho do tio algumas décadas depois dos eventos anteriores, sua sobrinha fala eloquentemente da obra arquitetônica de Tóth, da vida que reconstruíram em Israel, até afirmar, usando segundo ela as palavras de seu tio, “o que importa é o destino, não a jornada”. Imediatamente, o filme faz uma transição para a personagem mais jovem, sentada a uma mesa, incapaz de falar e de dimensionar na fala a dor da despossessão vivida, de ter perdido seus pais, sua casa, de saber que não há mais caminho de volta. A personagem mente: a jornada está ali, ela a persegue em qualquer destino, ela é parte dela e se impõe como imagem final.
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