A vida corre sob nossos pés, são os rios soterrados de São Paulo.
A notícia de que existe água em estado líquido em Marte vai completar 10 anos. Acredito que excite cientistas, astronautas e aqueles trilionários, que se divertem ao gastar rios de dinheiro em aventuras galácticas. Cá para nós, é água que passarinho não bebe. Primeiro porque não há passarinho em Marte, segundo porque a água é salgada e foi encontrada a 60 graus negativos.
Também nessa época, entre 2014 e 2015, São Paulo viveu a pior seca de sua história.
Se você, amiga leitora ou camarada leitor, perguntar qual a relação da descoberta no planeta vermelho com o banho de balde aqui em casa, responderei com a sinceridade de uma criança de 4 anos: Nenhuma!
Sem praia, com poucas lagoas e os rios poluídos, São Paulo dá impressão de cidade árida. Lorota. Se falta na superfície, sobra no subterrâneo.
Estudiosos já contaram pelo menos 300 rios e córregos invisíveis. Para nossa vergonha, permitimos que sufocassem o Saracura, o Itororó, o Cabuçu de Baixo, o Pacaembu, o Sapateiro. Genocídio ambiental para os carros passarem.
Águas passadas não movem moinhos, mas como seria bom passear de canoa, tomar banho de rio ou pescar bem pertinho de casa.
Quem sabe num futuro próximo uma prefeita corajosa não ressuscite toda essa riqueza para a cidade transbordar vida e beleza?
Quem se deixa levar pela correnteza paulistana, logo se encharca em outras bandas. A zona sul tem o bairro da Água Funda, pois na zona leste emergiu a Água Rasa. No oeste, Água Branca, e ao norte, que é mais fresco, Água Fria.
Muita água passou por baixo da ponte e jorraram outros nomes: Cachoeirinha, Rio Pequeno, Jardim Pantanal e o Sacomã, que significa água boa de beber.
A rua Ribeirão Preto é vizinha de margem da Rio Claro. Na Vila Anglo, andei pelas calçadas da Bica de Pedra em direção à Travessa Vazante.
Dar com os burros n’água faz parte. Insista, reme a favor da maré e desembarcará na rua Água Preta. Levante a âncora, que o Jardim Jangadeiro e a comunidade da Caixa Dágua são filhas do mesmo peixe.
Rio Doce, Rio Negro, Rio Verde... basta dobrar a esquina.
Ao ler o livro, O Pai dos Burros, do escritor Humberto Werneck, reencontrei uma infinidade dos chamados ditos populares. Alguns usam, diretamente ou não, a palavra água. E nessa crônica, apenas uma gota no oceano, abusei deles.
São frases feitas que um dia foram poéticas e impactantes. Depois, de tão usadas, se desgastaram e viraram o que a gente chama de clichê.
Todo dia aparecem na imprensa e na boca do povo.
A chuva não dá trégua.
Tempestade em copo d’água.
De alma lavada.
Nem tanto ao mar nem tanto à terra.
Humberto, amigo das palavras, compôs um divertido dicionário de lugares-comuns. A gente lê até debaixo d’água.
Neste ponto do texto, já perto das 500 palavras, prometo: desta água não mais beberei e nesta escrita não insistirei.
Seria como chover no molhado.
*O Pai dos Burros, de Humberto Werneck, foi publicado pela Arquipélago Editorial, em 2014.
*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter. O livro foi semifinalista do prêmio Jabuti 2024.