De acordo com o filósofo francês Herbert Marcuse, a tecnologia não é apenas instrumentos, dispositivos e invenções que caracterizam a era das máquinas, mas “uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes, um instrumento de controle e dominação”.
Ao mostrar que a tecnologia passou a ser uma forma de legitimação do poder político, Jurgen Habermas mostra que nas sociedades tradicionais, a “ação racional dirigida a fins se mantém dentro dos limites da eficácia legitimadora das tradições culturais”. Contudo, com o surgimento do modo de produção capitalista, e, consequentemente, com sua necessidade de assegurar um crescimento de produtividade constante em longo prazo, tornou-se indispensável a introdução de novas tecnologias, promovendo, assim, a institucionalização da técnica.
Sendo a tecnologia um instrumento de dominação, indispensável para o funcionamento do capitalismo, qual seria a sua relação com a educação, sendo, esta última, um instrumento de emancipação?
Para Paulo Freire, a tecnologia acaba sendo um instrumento usado pelos opressores para legitimar a sua ordem. “Daí que vão se apropriando, cada vez mais, da ciência também, como instrumento para suas finalidades. Da tecnologia, que usam como força indiscutível de manutenção da ‘ordem’ opressora, com a qual manipulam e esmagam”.
Contudo, o pedagogo de fama mundial não pode ser considerado um tecnofóbico. “Nunca fui ingênuo apreciador da tecnologia: não a divinizo, de um lado, nem a diabolizo, de outro. Por isso mesmo sempre estive em paz para lidar com ela. Não tenho dúvida nenhuma do enorme potencial de estímulos e desafios à curiosidade que a tecnologia põe a serviço das crianças e dos adolescentes das classes sociais chamadas favorecidas. Não foi por outra razão que, enquanto secretário de educação da cidade de São Paulo, fiz chegar à rede das escolas municipais o computador”.
A questão que Freire coloca é que “o progresso científico e tecnológico que não responde fundamentalmente aos interesses humanos, às necessidades de nossa existência, perdem, para mim, sua significação”. E infelizmente, o avanço tecnológico tem como finalidade a aceleração da circulação do capital e não - como pensam muitos ingenuamente em relação à internet - ampliar o acesso ao conhecimento e fortalecer a democracia. Até mesmo as plataformas sociodigitais, como Instagram, Facebook, Amazon etc., “proporcionam ao indivíduo ou a qualquer empresa contato informacional quase imediato a um gigantesco universo de compradores e vendedores, daí podendo reduzir extraordinariamente os tempos de rotação” do capital.
Por isso, que ainda nos seus escritos dos anos 1970, Freire afirma que “o pensar crítico é fundamental [...] como um modo de enfrentar a potencialidade mitificante da tecnologia”. Deste modo, quando salienta que “debater o que se diz e o que se mostra e como se mostra na televisão me parece algo cada vez mais importante”, podemos substituir “televisão” por redes sociais.
A nossa sociedade conectada mitifica as tecnologias da comunicação. O relacionamento entre os indivíduos, vínculos familiares ou empregatícios, são estabelecidos intensivamente pelas redes sociais. O debate público se dá pelo discurso que se prolifera na internet. Como dizia Mark Fisher, “as corporações capitalistas se esforçam para nos convidar a interagir, gerar nosso próprio conteúdo e participar do debate. Agora não há desculpa nem oportunidade para ficar entediado”.
Essa importância das tecnologias da comunicação já havia sido abordada por Freire, quando destaca que “nas sociedades massificados os indivíduos ‘pensam’ e agem de acordo com as prescrições que recebem diariamente dos chamados meios de comunicação”. Esses meios de comunicação evoluem e, desde os anos 1990, Gilles Deleuze “detectou a implantação gradativa de um regime de vida inovador, apoiado nas tecnologias eletrônicas e digitais”, um capitalismo mais dinâmico, “regido pelo excesso de produção e pelo consumo exacerbado, pelo marketing e pela publicidade, pelos fluxos financeiros em tempo real e pela interconexão em redes globais de comunicação”.
A massificação da informação é um problema. No mundo atual, parece que a informação deixou de informar e passou a ter uma finalidade em si. Faz parte de uma linha de montagem. É necessário fabricar informação em massa com o objetivo de lucrar. Por isso, é de fundamental importância criticar, selecionar e debater.
Seria um erro fatal da escola não debater o que a sociedade produz. A escola perderia a sua função primordial. A tecnologia vem dando maior acesso aos jovens para entrarem em contato com informações sem o filtro das famílias. Antes o jovem se informava com o telejornal que assistia ao lado de seus responsáveis. Hoje a informação chega até ele diretamente e de diferentes formas como comentários no X, memes, vídeos viralizantes no Instagram etc.. Quem, se não a escola, irá refletir sobre tais informações?
Se o aparelho celular é fundamental na sociedade de hoje, o debate sobre ele é indispensável na escola. Assim como os computadores de outrora. Se não debatermos o uso do celular acabará ocorrendo a mitificação de tal objeto. O que não é debatido é mitificado, e por sua vez se tornará útil para corroborar a dominação das classes dominantes. “Do ponto de vista das classes dominantes”, dirá Freire, “a ação cultural deve estar a serviço da preservação de seu poder. Daí a necessidade da mitificação da realidade, para o que aquelas classes contam com a ciência e a tecnologia sob seu comando”.
Continuando, Freire aponta que “a tecnologia não é apenas necessária mas parte do natural desenvolvimento dos seres humanos, o problema que se coloca à revolução é o de como evitar os desvios míticos”. O celular acabou se tornando um objeto mitificado. O iPhone é símbolo de status social. Ter uma quantidade alta de seguidores ou milhares de visualizações nas plataformas digitais tornou-se parâmetro de ser e poder convencendo a maioria dos jovens que terão fama e riqueza. A finalidade se torna o consumo, tanto que Freire adverte corretamente que a sociedade massificada “surge nas sociedades altamente tecnologizadas, absorvidas pelo mito do consumo”.
Se não deixarmos o celular e tudo que ele produz entrar na sala de aula para ser debatido, essa tecnologia receberá o significado que o mercado dá a ela. “A tecnologia deixa [assim] de ser percebida como uma das grandes expressões da criatividade humana e passa a ser tomada como uma espécie de nova divindade a que se cultua”. E, portanto, “a racionalidade, fundamental à ciência e à tecnologia, cede seu lugar ao ‘irracionalismo’ mitificante, sob os efeitos extraordinários da própria tecnologia”.
Tecnicidade antes da tecnologia
Nas escolas públicas, onde os recursos pedagógicos são escassos e o professor, na maioria dos casos, só possui a caneta e o quadro para trabalhar, o tédio provocado pelo modelo tradicional e parco de educação irá gerar inúmeros conflitos. Ou seja, os problemas educacionais continuarão. Com a crise das instituições, a escola se tornou “um produto entre inúmeros outros, que deve competir para capturar a atenção de seus clientes potenciais caso queira conquistar adeptos e subsistir. Mas fica em desvantagem por ser uma mercadoria pouco atraente, destinada a um cliente disperso e por definição insatisfeito, que, por sua vez, vive enfeitiçado pela variada oferta que a maquinaria do entretenimento não para de produzir”. Fica difícil para a escola desequipada enfrentar “a tríplice aliança entre meios de comunicação, tecnologia e consumo” que vem conquistando “a atenção e as graças do alunato do século XXI”.
Por isso é preciso tecnicidade antes de introduzir tecnologias num espaço. É imprescindível educação digital para modelar uma “mentalidade tecnológica, que inclui a compreensão da tecnologia, a sensibilidade quanto a matéria, forma e outras formas de existência, a relação entre arte e espírito etc.” para que o celular possa um dia voltar para a sala de aula. Até isso não ser realizado, o celular continuará fora da escola, criando um abismo entre ela e a realidade social.
Portanto, a proibição de celulares nas escolas não pode ser uma proibição das escolas no celular. É preciso levar o conhecimento crítico e científico que se aprende na escola para o que é lido e assistido no celular. Contudo, o modelo hegemônico educacional não procura valorizar o pensamento crítico, só está interessado em fabricar competências competitivas e resiliências submetidas aos interesses do capital. Esse tipo de educação não é capaz de produzir filtros para interpretar a enxurrada de informações que advém do aparelho celular. Por isso restou a proibição.
Em vez de se investir em uma educação crítica para a formação cidadã, investe-se numa reforma neoliberal do ensino médio. No Rio de Janeiro, a carga horária do professor em sala só aumenta junto à burocracia. Algumas escolas estão sendo privatizadas em São Paulo. Incentivos para formar professores se abundam enquanto que as condições das escolas e a valorização da carreira continuam humilhantes. O fato é que, apesar das medidas anunciadas pelo governo, ainda não foi feito nada que efetivamente melhore as condições estruturais (tecnológicas) da escola para competir com a realidade atraente que a cerca.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum
[1] MARCUSE, Herbert. Algumas Implicações Sociais da Tecnologia Moderna. In: KELLNER, Douglas (Ed.). Tecnologia, Guerra e Fascismo. Trad: Maria Cristina Vidal Borba. São Paulo: Editora Unesp, 1999, p. 73.
[2] HABERMAS, Jurgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Trad: Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1968, p. 62.
[3] FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 47.
[4] FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 98.
[5] Id., p. 147.
[6] DANTAS, M. Informação, trabalho e capital. In: DANTAS, M et. all. O valor da informação. São Paulo: Boitempo, 2022, p. 81.
[7] FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1976, p. 82.
[8] FISHER, M. Realismo Capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária, 2022, p. 158.
[9] FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade., p. 83.
[10] SIBILIA, P. Redes ou paredes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 45.
[11] FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade, p. 81.
[12] Id., p. 84.
[13] Id., p. 83.
[14] Ibidem
[15] SIBILIA, p. 66.
[16] HUI, Y. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu, 2020, p. 121.