Somos caso raríssimo no mundo animal. Imagino nossos colegas de quatro patas, de penas ou escamas a cochichar em seus códigos: “a humanidade é mimada e quanto mais tem, mais quer.”
Nascemos na dependência da teta materna e por muitos anos precisaremos da ajuda de pais, professoras ou amigos para não morrer de fome, tristeza ou ignorância. A conquista da autonomia varia de cada um e pode nunca chegar.
Quanta diferença em relação aos bichos.
O peixe nasce sabendo nadar, a ave bate as asas e ganha o céu, o potrinho galopa, a mula, coitada, já desperta trabalhando. O vira-lata é bom exemplo, pode morrer atropelado, de fome jamais.
As plantas domésticas têm essa semelhança com os homens. Precisam da dose certa de carinho e atenção. Se a água é pouca morrem secas, se exageramos se afogam.
Há alguns anos, moro num apartamento com quintal. É no centro, uma das áreas mais poluídas do Brasil.
Inspirado pela resistência das jaqueiras, mangueiras e taludos paus-ferros e paus-mulatos que crescem aqui na Vila Buarque, brinquei de jardineiro.
Comecei por temperos. Logo a casa se perfumou de manjericão, alecrim, hortelã.
Tentei as flores, surgiram as pétalas de azaleias, primaveras, alamandas. Depois, com a ajuda de um profissional, brotaram as frutíferas. Já tomei limonada, provei geleia de amora e só espero as jabuticabas amadurecerem, do mesmo jeito que maracujás e romãs.
Plantas coloridas? Lá estão crótons, bromélias, jasmim-manga.
Há poucos meses comprei duas mudas de manacá da serra. Filha da Mata Atlântica, ela costuma crescer rápido. Árvore colorida, combina o verde das folhas com as flores roxas e brancas.
Manacá só não resiste ao abandono. Deixei as mudas ao sol e quando voltei da viagem de três dias até o plástico dos pequenos vasos estava esturricado. Morreram cozidos os manacás. O primeiro vexame desse aprendiz de jardineiro.
O segundo veio no dia seguinte. Por pura frustração, tentei o impossível: em dois vasos grandes de barro, plantei as mudas secas, botei água, adubo, terra boa e também duas mãos cheias de minhocas. Apostei e perdi. Plantas não ressuscitam. Pelo menos aquelas.
O ar seco da primavera endureceu a terra que virou um micro deserto. Nem mato cresceu. Passei a deixar ali cascas de fruta.
Virou pasto de famintos sabiás, cambaxirras, sanhaços. Eles se revezam com beija-flores, pardais e rolinhas. Maritacas também dão os seus beliscos.
Alguns só comem frutas, outros gostam de grãos. A maioria não liga pro cardápio. Na falta de flor, bicam as minhocas; se as bichas estão bem enterradas, saboreiam insetos, mastigam abelhas, trituram formigas, engolem joaninhas.
Meu quintal, minúscula mancha verde no meio do cimento e asfalto, é um restaurante em eterna boca-livre, a freguesia se esbalda.
No primeiro andar do edifício, é refúgio acessível aos pássaros menores que não flanam tão alto assim.
Há quinze dias um dos vasos áridos ganhou folhas largas, grossas, com uma textura própria. Brotou um pé de amora onde o manacá não fincou raiz.
O mais provável é que um jardineiro alado tenha deixado o presente. Almoçou amoras e depois, ao se aliviar, espalhou as sementes. Deixo aqui meu sincero agradecimento.
O céu chumbado dessas tempestades de verão me fez pensar: pode ser um Chupim o autor da gentileza. É pássaro bem escuro, miúdo, conhecido na roça como rola-bosta.
Agradeço à colaboração dos amigos passarinheiros Takanoli Tokunaga e Zezo Cintra.
*Luis Cosme Pinto escreveu Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter. O livro foi semifinalista do Jabuti 2024.
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.