Vanessa Barbara e Natércia Pontes são duas grandes escritoras contemporâneas brasileiras, conhecidas por suas abordagens únicas e inovadoras na narrativa. Vanessa Barbara conquistou leitores com obras como "O Verão do Chibo" e "Noites de Alface". Natércia Pontes, por sua vez, destaca-se pela sensibilidade e profundidade com que aborda temas sociais em romances como "Copacabana Dreams" e "Os tais Caquinhos".
Ambas as escritoras, cada uma à sua maneira, oferecem novas perspectivas e vozes que ressoam com leitores de diferentes gerações. Ambas, como todas as mulheres escritoras brasileiras, são lutadoras incansáveis em um país que cada vez mais odeia sua cultura e regride à barbárie.
Antígona é uma das mais célebres tragédias gregas, escrita por Sófocles em aproximadamente 441 a.C. A peça faz parte da trilogia tebana, que inclui também "Édipo Rei" e "Édipo em Colono". Esta obra-prima da literatura clássica explora temas como o conflito entre lei divina e lei humana, a lealdade familiar, e a resistência ao poder autoritário.
A peça começa após a guerra dos Sete contra Tebas, na qual os dois irmãos de Antígona, Etéocles e Polinices, mataram-se mutuamente em um duelo pelo controle da cidade. Creonte, o novo rei de Tebas, decreta que Etéocles será enterrado com honras, enquanto Polinices, considerado um traidor, será deixado insepulto, à mercê de aves e cães, como um aviso para todos os que ousarem desafiar sua autoridade.
Antígona, irmã dos falecidos, vê-se diante de um dilema moral: obedecer à lei do rei ou seguir sua própria consciência e os mandamentos divinos, que exigem a realização dos ritos funerários para todos os mortos. Ela decide enterrar o irmão, Polinices, desafiando abertamente a ordem de Creonte.
Antígona acredita que as leis não escritas dos deuses são superiores às leis dos homens, enquanto Creonte insiste na supremacia do poder do Estado.
A peça explora a profundidade da lealdade familiar através da devoção de Antígona aos seus irmãos e sua determinação em garantir um enterro digno a Polinices, desafiando as leis do rei e arriscando a própria vida.
As histórias de Antígona, Vanessa Bárbara e Natércia encontram seu ponto de estofo em um novelo temporal que entrelaça duas épocas de dominação patriarcal e desprezo dos homens pelas mulheres, porém, nos tempos de Sófocles os homens lutavam diretamente com espadas e lanças e se defendiam com escudos. Já nos tempos atuais os homens lutam com palavras e se defendem escondidos em telas de computador ou celular.
E o nó disparador dessa história toda está na atitude radical, corajosa e desmedida de Vanessa Bárbara em gritar diante de toda a polis da internet (ou melhor, das redes sociais) sua história no episódio “CPF na nota?” da Rádio Novelo que foi ao ar no dia 16 de janeiro. No episódio, Vanessa Bárbara leva os ouvintes às águas profundas de um relacionamento triste, violento e desigual com seu marido, denominado “Tito” e lá, bem no fundo de uma trama de crueldade, sadismo, cinismo e covardia, nos afoga em revolta e vertigem.
Não apenas Bárbara foi explorada, maltratada e enganada, mas objeto de uma sórdida conspiração de uma espécie de maçonaria de amigos do seu marido, todos escritores, jornalistas e editores famosos e bem-conceituados, muitos os quais eu conheço de longa data, e atesto que nenhum deles vale uma camadinha de poeira. Porém, ao contrário da Ágora grega, espaço onde as vozes dissonantes eram ouvidas, e onde Antígona teve seu brutal silenciamento ao ser condenada ao emparedamento, o ato bravo de Vanessa foi emparedado de outra forma. Ao mesmo tempo em que despertou a ira das mulheres contra o clube do bolinha bizarro, gerou também uma onda de compaixão e solidariedade aos seus algozes trogloditas,
A questão toda não é o ato ético sublime em si mas a sua colocação onde o mundo fica virado do avesso, como diz a antropóloga Letícia Cesarino (em um livro já comentado em texto anterior). Quando Vanessa lança seu impressionante relato, ela dispara vários mecanismos. Um deles é identificação. Identificação não é necessariamente ser igual, pode ser igual ou o oposto. Muitas pessoas se identificam como iguais a elas outras como iguais a ele.
Em termos cibernéticos, o lançamento de uma narrativa tão potente ativa mecanismos algorítmicos que propositalmente atingem uma esfera bifurcada de usuários, à esquerda e à direita, homens e mulheres, feministas e machistas, amigos e inimigos que passam a comentar e compartilhar postagens com paixão e ódio. Para o seleto grupo dos CEOs e donos das empresas de tecnologia que detém mais poder e fortuna que todos os imperadores da história conhecida, a fórmula mágica não é conquistar a simpatia de toda a massa (isso é impossível), e sim gerar um conflito eterno e inconciliável, onde cada ação gera uma reação, que gera uma tréplica em laços infinitos de retroalimentação positiva.
Basta olhar para o mundo digital contemporâneo e suas ressonâncias na realidade: Israel-Palestina, Rússia-Ucrânia, Lula-Bolsonaro. O resultado disso é lucro com incremento tecnológico, publicidade, seguidores, venda de livros, etc. Eu mesmo já havia esquecido dos meus velhos conhecidos do Cardoso online (ops), metade dos “proud boys” envolvidos na contenda, e ontem fui a uma livraria e minha memória se ativou ao ver os livros de alguns deles nas prateleiras mais nobres.
E mais uma personagem entra nessa história: Natércia Pontes, casada com “Tito” há catorze anos, ou seja, desde a época em que os fatos do podcast são narrados. Natércia escreveu um texto tão contundente quanto o relato de Bárbara, desferindo contra esta golpes mortais de desqualificação muito bem escritos e fundamentados, incluindo fatos ocultados no podcast como pedidos de ajuda e tentativas de reconciliação enviados por Vanessa para “Tito” poucas semanas antes do podcast.
Natércia, em seu texto ácido e agressivamente sedutor, revela inclusive que Bárbara usou o nome de uma das duas filhas dela com Tito, Olga, para dar nome fictício a uma personagem. É óbvio que o texto jogou gasolina no incêndio da bifurcação digital. Um lado passou a odiar mais ainda Bárbara e outro acusou Natércia de sofrer da Síndrome de Estocolmo, ou de ter escrito o texto sob ordens do marido, de ser uma mulher submissa, etc. Na minha leitura, Natércia não defendeu o sujeito.
Para mim o relato dela mostra que para além do mundo algorítmico existe uma vida real de gente real. Inclusive, coloca Vanessa como um sujeito ético, ou seja, que não está apenas no lado claro ou escuro do espectro, e que tem direito, sim, a ter deslizes e cometer erros estratégicos. É um emblema da machosfera a exigência espartana com as mulheres. Elas não podem cometer erros. Mesmo que esse erro seja casar com “homenzinho feito às pressas” como diria Schreber.
Assim como Antígona, Natércia e Vanessa Bárbara, ao lançarem suas vozes potentes legítimas e honestas não lutam apenas por si ou contra os pobres insetos horrendos machistas e misóginos que somos todos os homens, mas sim em defesa da “lei dos deuses”, de todas as mulheres, dos filhos, das trabalhadoras, escritoras, narradoras contra a lei dos homens, tiranos, covardes, mesquinhos e empoderados.
Enfim, o principal ato ético, estético e político dessas três mulheres, que infelizmente foram levadas a guerra pela brutalidade e estupidez de outrem e em um campo de batalha indigno e infértil, foi desvelar mais uma vez que a dominação masculina é um vírus que nos governa, que contamina homens mulheres e dissidentes de gênero, sem exceção. Como todo vírus, se propaga mais ou menos em alguns meios, alguns desenvolvem imunidade relativa, outras são levadas a óbito, e além disso, como diz Paul Preciado, o vírus é um conceito inventado pela linguagem, e se dissemina tanto na biologia quanto no mundo digital.
E vírus não são artefatos da natureza, ou melhor, a natureza, essa natureza pura e espontânea não existe no atual estágio do capitalismo. Vírus são mercadorias que geram infinitas quantidades de mais-valor a homens como Bill Gates, Marck Zuckerberg, Elon Musck, Jeff Bezos, e aos pobres diabos antagonistas dessa história, cujos nomes não pronunciarei aqui.
Até mais, Galera!!!
Este texto é dedicado com muito amor e poesia ao grupo de leitoras, leitores e dissidências de gênero do Circuito UBU.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum