CRÔNICA

Sofá pela Janela

Daquele caminhão de mudança desembarcou uma parte do Brasil

Imagem ilustrativa.Créditos: Luis Cosme Pinto
Escrito en OPINIÃO el

O Nordeste mandou seus representantes. Só faltou o Ceará.

Gouveia, baiano, Nivaldo, do Piauí; já Alan, potiguar. Junto deles, o alagoano Evandro, o sergipano Stênio. Estes 5 desceram do caminhão-baú. Da caminhonete, desembarcaram Valfrido, filho de Pernambuco, Nestor, da Paraíba e seu Pereira, maranhense de Colinas. Ah, e de São Paulo, talvez o mais nordestino dos nossos estados, veio o Wanderson.

9 vozes. 9 sotaques. 9 homens com a mesma profissão: auxiliar de mudança. Implico com o “auxiliar”.

Que também aparece no “auxiliar” de limpeza, no “auxiliar” administrativo, no “auxiliar” de enfermagem.

Ora, ora. São os que fazem a faxina, os que conhecem a alma do escritório, os que acalmam a nossa dor. Por que auxiliares, se resolvem o principal?

Os profissionais que desembarcaram no bairro chique para fazer a mudança de Irene trabalham com cuidado e máxima concentração. Riscar espelho ou lascar louça é como perder pênalti na decisão, mancha o currículo e ainda pode custar o emprego.

A dona da mansão abre a porta com as marcas da insônia. Arrasada pela quase fuga do parceiro, que partiu de repente, e assustada pela solidão depois que cada um dos dois filhos escolheu um destino distante onde não havia lugar pra ela, Irene decidiu trocar a casa por um apartamento de sala e 2 quartos, com espaço suficiente para ela e Cocada, a amiga de quatro patas.

Em outras insônias, nesta mesma semana, a dona da casa guardou em sua mochila pequenos tesouros. Numa caixa dourada de papelão, as cartas que escreveu e nunca mandou e algumas que recebeu e relê até hoje.

Também preservou o guardanapo respingado de cerveja com o autógrafo de Tom Jobim, o ingresso de um show de Stevie Wonder em Nova York, o ticket de um museu francês, o convite do baile de debutante de Karina, até hoje a melhor amiga.

O troféu maior embrulhou bem embrulhado: dentro do porta-retrato, com moldura de madre pérola, a foto em que o ex-marido e os dois filhos aparecem em Campos do Jordão. Os três lindos e bravos porque Irene preferiu dar o clique em vez de posar. Os homens de sua vida implorando por ela.  

Os homens de sua vida agora são outros e estão ali a esperar em silêncio o fim de sua viagem ao passado.

Eles entram esfregando os pés no capacho e as mãos umas nas outras, como a dizer: “bora ralar?”.

A equipe embala copo por copo, prato por prato, depois talheres, panelas.

É a vez dos móveis. Começa aquele malabarismo em que uma cama de casal ou uma geladeira grande precisa passar por um vão estreito ou descer uma escada. Cada um segura de um lado, um terceiro orienta.

- Vai, entra você.

- Dá um passo pra trás.

- Deixa cair de leve.

- Isso, agora levanta. Suaaaave.

- Mais um passinho. Pronto.

É como estacionar uma jamanta em vaga apertada. Irene vê tudo de longe, se no início se incomodou com a agitação provocada por tantas vozes, agora admira a união daqueles homens fortes, que levantam fogão, poltrona e pilhas de livros como se fossem de isopor.

Na manhã seguinte, Irene espera a equipe no novo apartamento. Ágeis e ao mesmo tempo serenos, eles distribuem caixas pela casa, montam móveis, penduram quadros.

O sofá principal, um tanto roliço para o novo endereço, não coube no elevador. Monta-se na sala um grande carretel, que desenrola duas cordas grossas. Elas descem pela janela até chegar ao térreo. Lá embaixo, o móvel é bem amarrado. Começa o içamento. Só quem faz força é a máquina. Em menos de um minuto o gigante de veludo preto sobe ao décimo-quinto andar e entra pela janela da sala, que foi desmontada para a estrela da mobília assumir seu lugar.

Não faz tanto tempo era no braço. Vários homens puxavam cordas para que um piano ou um guarda-roupa de 8 portas chegasse sem cicatrizes. E eles chegavam.

A equipe se despede. Aqueles 9 homens, habilidosos em seu trabalho tão importante, inspiram Irene, que enfim se anima com a nova casa.

Porém, ela se encanta mesmo é quando ouve, do outro lado da parede, a voz do vizinho. É Leo, de 5 anos.

“Vô!! Eu vi um sofá voador. Ele entrou pela janela da vizinha. Eu filmei tudo e vou te mandar.”

*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter. O livro foi semifinalista do prêmio Jabuti 2024.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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