CINEMA

Apanhado do Cinema 2024 - Cesar Castanha

Essas listas funcionam como um diário anual, que podem ser visitados não apenas para relembrar filmes amados, mas também modos de viver que em algum momento compartilhamos com esses filmes

Sala de cinema.Créditos: Tima Miroshnichenko/ Pexels
Escrito en OPINIÃO el

Comecei a escrever sobre cinema aos 15 anos como uma prática de fã, de aficcionado, por um conjunto de filmes (em maioria, estadunidenses) que faziam parte do meu norte de referências naquela época. A formação com a crítica veio depois, e essa formação, como era de se esperar, transformou aos poucos a perspectiva sobre os cinemas existentes e, consequentemente, o gosto. A formação é contínua e, junto com os processos comuns do envelhecimento, continua produzindo novas sensibilidades, alterando maneiras de experimentar o cinema e o audiovisual como um todo, conduzindo a novas prioridades políticas, interpretativas e sensíveis. O primeiro Apanhado do Cinema desta página foi de 2011. Desde então, tenho refeito algumas dessas listas para minha própria contemplação dessas mudanças, mas também para perceber como aqueles gostos anteriores, aquelas sensibilidades e afetações, informam minha maneira de ver o mundo, a arte e a mim mesmo hoje. Há um belo filme de 2024, ainda não lançado comercialmente no Brasil, que produz um movimento semelhante. Em I saw the TV glow (dir. Jane Schoenbrun), um personagem é transformado pela experiência televisiva de sua adolescência, que forma ele mesmo e a sua comunidade a um ponto radical, fantástico, ele é parte implicada daquela obra que ele ama, e a maneira como ele se relaciona com ela vai agir sobre toda a sua vida. Essa é uma simplificação do filme, mas ela me serve para pensar como essas listas funcionam como um diário anual, que podem ser visitados não apenas para relembrar filmes amados, mas também modos de viver que em algum momento compartilhamos com esses filmes, nem que seja ao cedermos nossa atenção a eles. Sigo aqui, desse modo, para mais um registro. Estes são os meus favoritos do ano de 2024.

  1. La chimera
  2. Tudo que imaginamos como luz
  3. Zona de interesse
  4. I saw the TV glow
  5. Grand tour
  6. O quarto ao lado
  7. Greice
  8. Furiosa: uma saga Mad Max
  9. Rivais
  10. O menino e a garça

La chimera literaliza um cinema de superfícies sobre superfícies, imagens sobre imagens, em um filme que explora todo um imaginário da cultura visual, de estátuas antigas a cartas de tarot; Tudo que imaginamos como luz brinca com as formas e as texturas do realismo social na Índia contemporânea; Zona de interesse pensa as arquiteturas e territorialidades do Holocausto como metáfora para apartheids presentes; I saw the TV glow imagina o afeto de um espectador como constitutivo da sua vida, e a sua vida, em troca, como parte da obra amada; Grand tour reconstrói os filmes de viagem pela intertextualidade e pela radicalidade no uso das línguas; e O quarto ao lado explora o jogo de cena do melodrama para pensar as ansiedades com o fim do mundo – e a nossa relação com a morte.

O trabalho de direção de Alice Rohrwacher em La chimera consiste em manejar a força das imagens (de um rosto em close-up, da textura de uma roupa, das cores de uma gravura, da forma de uma escultura, da visão de uma paisagem) de modo que elas possam existir em conjunto. Esse trabalho se torna mais delicado considerando que este é propriamente um filme sobre cultura visual, com personagens que trabalham descobrindo e desenterrando imagens. Rohrwacher consegue atender ao tema e a seus personagens e ao mesmo tempo nos oferecer um mundo visual próprio e coerente a partir disso, um mundo que faz sentido, e é palpável, como forma audiovisual.

Direção:

  1. Alice Rohrwacher (La chimera)
  2. Payal Kapadia (Tudo que imaginamos como luz)
  3. Jonathan Glazer (Zona de interesse)
  4. Jane Schoenbrun (I saw the tv glow)
  5. Miguel Gomes (Grand tour)

Yara de Novaes é uma atriz que interpreta uma atriz em Malu, navegando os excessos performáticos e dramáticos do filme com a habilidade pela qual é conhecida em seu trabalho de teatro; Mikey Madison ocupa a posição central de Anora e ajuda a conduzir o filme nos ritmos e coreografias de uma comédia screwball; Daniel Craig nos apresenta um gringo expatriado na Cidade do México em Queer, um filme especialmente meticuloso com o gestual de seus atores.

Atuação protagonista em filme:

  1. Yara de Novaes  (Malu)
  2. Mikey Madison (Anora)
  3. Daniel Craig (Queer)
  4. Sebastian Stan (Um homem diferente)
  5. Soheila Golestani (A semente do fruto sagrado)
  6. Koji Yakusho (Dias perfeitos)

Atuação protagonista em obra seriada:

  1. Hiroyuki Sanada (Shogun)
  2. Bridget Everett (Alguém em algum lugar)
  3. Emma Stone (The curse)
  4. Colin Farrell (O Pinguim)
  5. Anna Sawai (Shogun)
  6. Maya Erskine (Sr. e Sra. Smith)

Atuação coadjuvante em filme:

  1. Crista Alfaiate (Grand tour)
  2. Sandra Huller (Zona de interesse)
  3. Juliana Carneiro da Cunha (Malu)
  4. Adam Pearson (Um homem diferente)
  5. Carol Duarte (La chimera)
  6. Jacques Develay (Misericórdia)

Não há nenhum espectador de Alguém em algum lugar que eu conheça que não sinta que a série se despede cedo demais. Com personagens carismáticos e um tratamento do conflito que não se vê em outras séries de televisão (permitindo tempo e complexidade às questões dos personagens), a série desponta como uma das obras mais inovadoras do gênero no ano passado. Já mencionei aqui o trabalho de Jeff Hiller na série na lista de 2022. Na temporada de conclusão, Hiller leva o seu personagem a um arco emocional difícil principalmente pelo estilo da série (pouco dada a grandes embates, epifanias e excessos), desdobrando aos poucos a sua crise e o enfrentamento dela.

Atuação coadjuvante em obra seriada:

  1. Jeff Hiller (Alguém em algum lugar)
  2. Deirdre O’Connell (O Pinguim)
  3. Abby Elliott (The Bear)
  4. Tadanobu Asano (Shogun)
  5. Benny Safdie (The curse)
  6. Dakota Fanning (Ripley)

Planeta Janet é uma narrativa de crescimento que dirige seu olhar para uma relação de mãe e filha no início dos anos 1990, em Massachusetts. O filme apresenta uma sofisticação visual notável, mas é sustentado especialmente pelas atuações de Julianne Nicholson e Zoe Ziegler como Janet e Lacy respectivamente. Já vimos muitos jovens atores da idade de Ziegler apresentar trabalhos competentes diante da câmera, mas trabalhar nessa idade uma personagem construída em torno da falta de carisma, como é o caso de Lacy, é algo mais raro, e a atriz o faz com excelência. Will Patton e Sophie Okonedo também merecem menção pelo trabalho no filme.

Elenco:

  1. Planeta Janet
  2. Kneecap
  3. Tudo que imaginamos como luz
  4. Malu
  5. A semente do fruto sagrado

Os dois grandes destaques em relação aos trabalhos coreográficos apresentados no cinema em 2024 são, para mim, os dois filmes de Luca Guadagnino, Queer e Rivais. Ambos tratam com inteligência a aproximação, o desejo e a sensualidade a partir de uma relação cuidadosamente construída entre o corpo e movimento dos atores, a montagem e a câmera. Fico também bastante feliz de realçar aqui também um filme brasileiro, Greice, que consegue construir toda a sua espacialidade a partir das andanças de personagens inquietos.

Trabalho coreográfico:

  1. Queer
  2. Rivais
  3. Greice
  4. Furiosa: uma saga Mad Max
  5. Anora

O texto expositivo e pouco sutil de O quarto ao lado demonstra uma vontade do filme de enfrentar pelo texto e pelas atuações (ainda que com um belo trabalho cênico) essas conversações sobre a morte; Tudo que imaginamos como luz cria um conjunto de personagens que ganham vida para além do que a princípio se sugere uma narrativa de realismo social; I saw the TV glow encara os arquivos da cultura pop e descobre uma história original de ficção-científica e autodescoberta.

Roteiro:

  1. O quarto ao lado
  2. Tudo que imaginamos como luz
  3. I saw the TV glow
  4. Greice
  5. Misericórdia

Roteiro em série:

  1. “V Lucio”, Ripley
  2. “Green Queen”, The curse
  3. “Num nums”, Alguém em algum lugar
  4. “Crimson sky”, Shogun
  5. “Clarksville”, Girls5eva

Não é supreendente elogiar a montagem de um filme como Rivais, quando até seus maiores críticos tendem a apontar para um tipo de exibicionismo formal da edição do filme. Em contraponto, argumento que esse dinamismo tem uma sofisticação incomum pela maneira como se utiliza da montagem para apontar aproximações e distâncias e modos de atenção entre os personagens, o que se torna um importante maneirismo para um filme interessado em estudar o que, no esporte, se movimenta como sexo e o que, no sexo, se movimenta como esporte.

Montagem:

  1. Rivais
  2. Anora
  3. A Fidai Film
  4. Greice
  5. Furiosa: uma saga Mad Max

A fotografia de Samsara combina os contatos geralmente empreendidos por filmes etnográficos, como a construção de uma imagem de alteridade, com a proposição de uma experiência de transcendência que interessa ao filme a partir da forma da audiovisualidade. Assim, seu enquadramento, seu trabalho de cores e a composição do plano não apenas descobrem um “outro” filmado, mas se envolvem com um mundo do outro, incluindo seus modos e viver, suas crenças e suas paisagens.

Fotografia:

  1. Samsara
  2. Zona de interesse
  3. Tudo que imaginamos como luz
  4. La chimera
  5. O quarto ao lado

Nos filmes de Hayao Miyazaki, a trilha sonora sempre foi um elemento constitutivo do drama. O menino e a garça não só não é diferente, como é também mais envolvido do que filmes anteriores do diretor com bons tipos melodramáticos na sua narrativa (o casamento de um viúvo com a irmã da esposa, o rico garoto órfão vivendo em uma mansão mágica) que recebem motivos igualmente melodramáticos nos excessos da trilha sonora, incluindo seus excelentes leitmotivs.

Trilha sonora:

  1. O menino e a garça
  2. Tudo que imaginamos como luz
  3. Salomé
  4. O quarto ao lado
  5. Rivais

A trilha sonora de I saw the TV glow carrega a função de pontuar o filme com momentos de intensidade que mantenham o tom de desorientação e encanto dos momentos sem música. Com “Claw Machine”, Sloppy Jane e Phoebe Bridgers criam uma faixa que sugere um tipo de suspensão da realidade material (uma suspensão vivida pelos personagens na confusão entre ficção e realidade) ao mesmo tempo que mantém uma letra quase comicamente descritiva em relação ao filme.

Música:

  1. “Claw machine”, I saw the TV glow
  2. “Starburned and unkissed”, I saw the TV glow
  3. “Release”, Armadilha
  4. “Una goccia nel mare”, La chimera
  5. “Sick in the head”, Kneecap

Som:

  1. Furiosa: uma saga Mad Max
  2. Zona de interesse
  3. Samsara
  4. I saw the TV glow
  5. Grand tour

Direção de Arte:

  1. Queer
  2. Malu
  3. Um homem diferente
  4. Furiosa: uma saga Mad Max
  5. Pobres criaturas

Há alguma coisa em Malu que se assemelha a um trabalho de teatro. Para identificar esse alguma coisa poderíamos ir facilmente ao texto (com muitos diálogos, monólogos, conflitos que se resolvem na fala) e a trajetória dos seus atores nos palcos, mas o que me parece menos evidente, e que fortalece esse vínculo, é a circunscrição espacial do drama do filme na casa de Malu, onde se ambienta maior parte da narrativa. É sempre feliz quando um filme apresenta uma geografia audiovisual tão bem realizada que sentimos a capacidade de mapear aquele espaço. No caso deste trabalho cenográfico, a excelência está também em conseguir estabelecer as diferentes dinâmicas de poder, disputas e conflitos que se intensificam e localizam em pontos diversos da casa.

Cenografia:

  1. Malu
  2. Zona de interesse
  3. Queer
  4. Um homem diferente
  5. O quarto ao lado

Já nos últimos dias de 2024, o Festival de Brasília premiou o filme Salomé, uma fantasia queer recifense que não tem medo da visualidade, das superfícies, do artifício e do excesso. Se não podemos dizer que esses interesses são raros no cinema brasileiro, ainda é um fato de que eles tendem a ser pouco valorizados pelos júris de festivais de cinema e por boa parte da crítica. A protagonista de Salomé é uma estrela da moda, mas é na composição visual dos personagens fora das passarelas que o trabalho de figurino do filme se torna especialmente merecedor de elogios.

Figurino e maquiagem:

  1. Salomé
  2. La chimera
  3. Furiosa: uma saga Mad Max
  4. Pobres criaturas
  5. Queer

Alguém em algum lugar se encerra antes do que deveria, com a melhor de suas três temporadas; Ripley apresenta uma bem-vinda nova leitura para uma narrativa conhecida, testando as possibilidades de ritmo e estrutura da obra seriada; e The curse utiliza o formato dos reality shows de reforma de casa para uma reflexão política bastante radical sobre territorialidade, em uma criação quase surrealista.

Série ou minissérie:

  1. Alguém em algum lugar
  2. Ripley
  3. The curse
  4. Shogun
  5. Girls5eva

Desde que o vi no cinema, o filme Quando aqui me assombra. Poucas outras obras audiovisuais deste ano foram tão habilidosas em seu manejo do espaço e do tempo. Os saltos ao passado, presente e futuro no espaço imaginado da casa dos pais do diretor descobrem, na ficção dos personagens inventados pelo filme, a permanência material das paredes, portas, azulejos, janelas e chãos que constituíram o espaço vivido do diretor e de sua família (e cenário de alguns de seus outros filmes). Quando aqui exercita o sonho de um cinema que se compromete eticamente com o mundo vivido – é algo lindo de se ver realizado.

Curta ou média-metragem:

  1. Quando aqui (dir. André Novais Oliveira)
  2. Porto das Almas (dir. Carolina Timoteo)
  3. The strange day when Augustine Lafarge decided to take revenge on an Englishman (dir. Antoine Mathieu)
  4. O ultimo dia (dir. Mahmoud Ibrahim)
  5. Europa: me avisa quando chegar (dir. Victor Vieira)

Documentário:

  1. A Fidai Film (dir. Kamal Aljafari)
  2. Samsara (dir. Lois Patiño)
  3. Nossos corpos (dir. Claire Simon)
  4. Dahomey (dir. Mati Diop)
  5. No other land (dir. Yuval Abraham, Basel Adra, Rachel Szor e Hamdan Ballal)

Animação:

  1. O menino e a garça (dir. Hayao Miyazaki)
  2. Maurice’s Bar (dir. Tom Prezman e Tzor Edery)
  3. O robô selvagem (dir. Chris Sanders)
  4. Ny Fiaran'i Dada (dir. Jeremy Andriambolisoa, Cérine Raouraoua, William Ghyselen e Benjamin Germe)
  5. Lights (dir. Jitka Nemikinsová)

Continuadamente engajados em comentar, citar e trabalhar o imaginário racial nos EUA, Childish Gambino e Hiro Murai voltam a colaborar no clipe “Little Foot Big Foot”; “Von dutch” é o fenômeno (inegável, ainda que um tanto anacrônico em suas políticas) do verão “brat” de Charlie xcx  tomando forma audiovisual; e “Eusexua” traz mais um envolvimento de FKA twigs com um projeto artístico/coreográfico/audiovisual que vai muito além de um trabalho estritamente musical.

Videoclipe

  1. "Little Foot Big Foot", Childish Gambino (dir. Hiro Murai)
  2. "Von dutch", Charli xcx (dir. Torso)
  3. "Eusexua", FKA twigs (dir. Jordan Hemingway)

Menção honrosa:

A experiência do teatro com a plateia diante do palco produz uma sensação de presença que não se iguala à gravação de uma peça em suporte audiovisual, ainda assim esforços para registrar peças de teatro e torná-las disponíveis a uma distância geográfica e/ou temporal devem ser elogiados e reconhecidos como parte de um movimento de democratização do acesso ao teatro, ao texto e à criação teatral. Na Inglaterra, o National Theatre Live possibilita justamente isso. Graças a ele (e a redes extraoficiais de distribuição desse material) pude ver este ano a excelente releitura de Tio Vânia, peça de Anton Tchekhov, realizada por Simon Stephens e Andrew Scott. Que outros projetos como esse se proliferem pelas casas e companhias de teatro do mundo.

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