MOUZAR BENEDITO

O mundo acabou e vocês não perceberam

Para quem anda preocupado com o que acontecerá conosco, não se preocupe: já aconteceu, ou melhor, está acontecendo

Créditos: Imagem gerada por inteligência artificial
Escrito en OPINIÃO el

Durante a pandemia, mais ou menos um ano depois do seu início, recebi uma mensagem de alguém que não me lembro, dizendo: “O mundo acabou. Nós que estamos aqui somos os que não nos salvamos”.

Concordei. Meu materialismo foi pro brejo. Aliás, este fim de mundo é um imenso brejo, com o calor dos infernos chegando progressivamente com o aquecimento global, que todo mundo vê que está acontecendo, uns fingem que não, outros acreditam que sim mas podem tirar uma casquinha nisso, lucrando mais e ligando um “foda-se” para o mundo. O capital prefere o fim dos tempos do que o fim dos privilégios e a diminuição dos lucros. 

Então, para quem anda preocupado com o que acontecerá conosco, não se preocupe: já aconteceu, ou melhor, está acontecendo.

Trump presidente com pretensões apocalípticas e condições de realizar isso? Faz parte.

Para quem quiser se opor ao óbvio que é o fim dos tempos, citando que Lula venceu Bolsonaro aqui e outros eventos, acho que isso é só uma espécie de propaganda do inferno: nem tudo está tão mal. Um respiro de quatro anos em que a direitona apocalíptica se fortalece não só aqui, mas no mundo. Incêndios florestais jamais vistos, enchentes cada vez mais catastróficas, genocídios televisados e muitas vezes “justificados” e até aplaudidos, poluição total do ar dos rios e da terra, fim de direitos dos trabalhadores, aumento da miséria e das desigualdades, educação (escolar, mas também civilidade) em plena decadência; fim da música brasileira, trocada por uma barulheira que incomoda os ouvidos; Copa do Mundo no Qatar e daqui uns anos na Arábia Saudita (para o Brasil, que não tem mais futebol, tanto faz); imigrantes e filhos ou netos de imigrantes que migraram por causa de guerras ou miséria tratando como demônios os novos migrantes que fogem de guerras ou da miséria... tudo isso são sintomas que muitos fazem questão de fingir que são coisas normais. As novas epidemias e pandemias que se tornarão cada vez mais frequentes também. 

Aqui, o desmatamento da Amazônia e do Cerrado vão continuar, com o extermínio de povos indígenas, o garimpo que vai liquidar as poucas águas não poluídas que restam também continuarão, assim como a perda progressiva de direitos dos trabalhadores, a “uberização”, como dizem, e a elevação do nível do mar, que vai daqui uns anos engolir tudo quanto é cidade litorânea. Aqui e no resto do mundo, os “sobreviventes”, se é que pode-se chamar assim, vão ter tantas doenças que terão que tomar vacinas para as coisas malignas que vêm aí pelo menos uma vez por semana. Serão no mínimo 52 pragas que exigirão vacinas. Vírus e bactérias vindas das geleiras milenares que se libertarão com o o degelo, assim como os que ainda estão sossegados nos restos de florestas, vêm aí com força total e, claro, muita gente achando “normal”. Nada a ver com a ação humana.

Bom, digo tudo isso pra quê? 

Já que estamos no inferno e só vamos chegar à caldeira daqui um tempo, vamos nos divertir um pouco, ou passar mais raiva, relembrando coisas que já nos divertiram ou nos irritaram. Da minha parte vou lembrar um pouco de coisas corriqueiras que se acabaram e hoje parecem maravilhas perdidas. E também de alguns personagens que me divertiram ou me deixaram bravo.

1. Antes da pandemia, eu não ficava uma noite sequer em casa. Tinha que ir a botecos. Nos últimos tempos, meu ponto do dia-a-dia (epa, da noite-a-noite) era um boteco chamado “Cadeira da Vila”, dos mais baratos. Era meu escritório. Quem quisesse me encontrar sabia que passando lá entre 7h30 da noite e por volta das 10h, me encontraria lá, de segunda a sábado. Domingo fechava e eu costumava a ir nesse horário ao Bar das Empanadas. Nas vésperas de Natal e do Ano Novo, eu saía “desesperado” procurando um bar aberto, não me passava pela cabeça ficar em casa. Confinado na pandemia, quando voltei a poder ir aos bares não aguentava mais. Muito barulho. 

2. Para se juntar a isso, duas covids e uma dengue me detonaram. Doenças chatíssimas, que me fizeram abster do álcool. Eu, que fui jurado de festival de cachaça, que todas as noites “abria os serviços” com um Underberg e bebia de tudo, agora, se quiser beber, tem que ser cerveja sem álcool. Pode? Com isso e com o que listei no item 1, me tornei o que na minha terra chamam de passarinho manso de gaiola. Uns passarinhos criados na gaiola se acostumaram tanto a ela que pode deixar a porta aberta que não fogem. E se os colocarem pra fora, ficam doidos pra voltar. 

3. Tinha um restaurante por quilo bem pertinho de casa, onde almoçava vários dias por semana e encontrava lá vários amigos. Quer coisa mais corriqueira? Pois não tem mais e às vezes fico achando que foi um tempo de felicidade que nem sei se foi real ou um sonho, pois almoçar agora é só em casa, às vezes com comida pedida para entrega aqui, não por aplicativos que acho uma sacanagem, só compro de restaurantes (na populares com entregador próprio, a quem dou uma gorjetinha a mais). 

4. Viajar... Eis aí outra coisa que sempre fiz muito. Conheci todos os estados brasileiros e andei um pouco fora. Agora, não mais. Ah... Juntando isso tudo que citei até agora, lembro-me que sempre achei que existe um certo sadismo em quem determina nossos destinos. Beethoven, músico genial, ficou surdo; João do Pulo, atleta olímpico, perdeu uma perna num acidente. Poderia citar outros, mas restrinjo-me ao meu modesto caso. De bebedor cotidiano, viajante “contumaz” (eita palavra!), passei a abstêmio e confinado em São Paulo, ou melhor, num bairro de São Paulo, onde andava muito a pé – era um dos meus prazeres – e agora não mais. Ah, imaginava que se um dia ficasse confinado escreveria um romance por mês. Faço isso? No começo da pandemia escrevi um, mas ficou tão ruim que nem dá pra arriscar a mandar para uma editora (aliás, mesmo que fosse ótimo, as editoras atuais, todas as grandes e médias, e também muitas pequenas são encasteladas de um jeito que só mesmo uns escritores com QI – quem indicou – muito forte têm acesso. É mais fácil marcar audiência com o papa do que com algum editor). Tenho assuntos para outros romances, mas com as doenças, tratamento médico pesado, minha criatividade e meu poder de concentração foram pro beleléu, diminuí muito até a leitura de livros. Escrever livros, então, zero possibilidade. Andei publicando alguns escritos há muitos anos. 

5. O politicamente correto, que já era chato, arrumou mais uma vertente, o identitarismo, que vai matando a esquerda. Vou me abster de comentários, só citar uma coisa: no início deste século, a Editora Expressão Popular decidiu lançar uma série chamada “Viva o Povo Brasileiro”, com minibiografias de pessoas que deveriam ser estudadas nas escolas, mas não eram. Os escritores deveriam escrever de graça, para que os livrinhos pudessem ser vendidos bem barato para militantes de movimentos populares e outros leitores pobres. Um dos minibiografados deveria ser Luiz Gama, que na época não era tão conhecido. E quem podia dedicar uns meses para estudar a vida dele e escrever? Ninguém, nenhum negro ou branco. Eu fiz isso. Se fosse hoje, me crucificariam por ter escrito sobre Luiz Gama e sua mãe, Luíza Mahin, por não ter “lugar de fala”. Não sou negro, embora tenha apoiado o Movimento Negro desde há muito tempo e, no Versus, belo jornal de esquerda que ajudei a criar, cedemos quatro páginas por edição ao Movimento Negro Unificado, em que seus militantes escreviam o que queriam, sem edição da nossa parte.

6. Poderia continuar nas coisas boas perdidas, mas vou agora só me lembrar de alguns personagens que nestes tempos me voltaram à cabeça para, de alguma forma, me divertir ou relembrar que cruzei com gente boa e ruim:

a) Os pães-duros (eita plural de pão-duro). Na época eu achava bestas e continuo achando, mas me divirto com as lembranças. Um deles, meu colega de trabalho, achava um desperdício gastar dinheiro com um despertador. Tinha que se levantar às 6h30 para trabalhar e esse era o horário que um vizinho saía para pegar o ônibus, então “não custava nada” para esse vizinho tocar a campainha para ele acordar. Ficou bravo quando perguntei o que faria se o vizinho ficasse doente ou tirasse férias. Outro era rico, mas trabalhava numa instituição cultural e ferrou os colegas para ser promovido a chefe de equipe ganhando o equivalente a uns duzentos reais nos dias de hoje. Um fazendeiro rico gostava de ler jornal, mas não achava que valia a pena comprar ou assinar. Todos os dias ia à biblioteca pública ler o jornal do dia anterior, que só chegava lá no final da tarde. Uma mulher riquíssima lavava o coador de café de papel para reutilizar, não por motivos ambientais, mas para não gastar (desta teria um monte de coisas pra contar).

b) Os de mau-caráter. Um deles trabalhava viajando pelo interior e se orgulhava de ter passado gonorreia para um monte de meninas. Outro – quando a mulher de um colega teve câncer e naquela época não tinha planos de saúde e nem SUS, e custaria muito o tratamento, gastando o que o casal tinha e o que não tinha – propôs que o colega rifasse um enciclopédia recém-comprada. O cara disse que não levava jeito pra isso e ele se ofereceu: “Eu faço a rifa e vendo, você vai conseguir umas quatro vezes mais do que pagou por ela. Traga a enciclopédia para eu mostrar aqui, que todos vão comprar”. Deu certo. Todos compraram em solidariedade ao colega, mas quem ganhou não recebeu a enciclopédia e o colega com a mulher doente não viu a cor do dinheiro, o sujeito se apropriou da enciclopédia e da grana da rifa.  

c) Os divertidos. Um deles, meu colega de trabalho num escritório, desenhou um coração numa cartolina e fez traços horizontais e verticais dentro dele, dividindo-o em 57 “compartimentos” e em cada um escreveria o nome de um amigo. Determinou que em toda a vida teria 57 amigos, ocupando esses compartimentos. Naquela altura, tinha 15 compartimentos ocupados, mas um deles pulou a ordem cronológica, ocupou um “compartimento” pré-determinado. Era um sujeito muito delicado e o meu colega decidiu: “O compartimento 24 é do Machadinho e ninguém tira”. O Albertinho, até os  trinta e poucos anos, só saiu de São Paulo uma vez, quando o convenci a viajar para Minas. Comprou um monte de livros e mapas de Nova York, estudou bem e sabia “tudo” sobre a cidade. Não porque fosse gringófilo ou tivesse vontade de ir lá. É que viajar para o exterior na época dava charme, e muitos que voltavam dessas viagens se exibiam. Nova York era um destino dos mais exibidos. Em alguns encontros ou festas, quando alguém começava a se exibir falando de Nova York, o Albertinho lhe perguntava (sempre de lugar que não ia turista): “Você, conhece tal coisa na rua tal?”. O cara respondia que não, ele perguntava mais duas ou três coisas e depois sapecava: “Você não foi nunca a Nova York, não conhece nada de lá, e fica se exibindo aqui”. Não vou citar mais, tem muitos.

d) Os que realizaram coisas boas. Destes vou citar o Geraldo, mais conhecido como Alagoinhas, que estudou História quando eu estudava Geografia, e moramos no Crusp - Conjunto Residencial da USP – em 1968. Boa pessoa, vivia duro em São Paulo, mas estudou e trabalhou muito e, quando pôde, criou em sua terra, São José do Paiaiá, na Bahia, um povoado com uns 600 habitantes, a maior biblioteca em comunidade rural do mundo, com 120 mil títulos. Não é um “depósito de livros”. Promove atividades regulares atraindo gente de toda a região para formar leitores. Participei de um evento desses.  

e) Bonita com consciência de classe. Uma amiga bem liberada transava com todos os colegas de trabalho, menos com os chefes. 

f) O de quem herdei namoradas. Uma época todas as namoradas que eu arrumava tinham sido namoradas dele. Um dia o vi namorando uma estudante da Faculdade de Filosofia da USP, minha amiga, que além de bonita era muito inteligente, culta e simpática. Um dia falei pra ela que estava feliz de saber do namoro dela com o meu amigo. Ela se espantou, dizendo que não sabia que era tão amigo dele. Respondi que era, sim, mas além disso eu herdava todas as namoradas dele, então ela seria a próxima. Esta, eu não herdei. 

g) O bom guerrilheiro, sem senso de direção. Nas ações da ALN, ele era líder mas tinha que ter algum companheiro acompanhando para ele não correr pro lado errado quando era preciso. Um dia, numa “expropriação” de um banco no Rio de Janeiro, comandando a ação, fez o discurso para os clientes: “Esta é uma ação de expropriação do dinheiro dos banqueiros para sustentar a guerrilha etc. etc. Não queremos nada de vocês, só do banco etc.”. Uma velhinha perguntou: ‘Moço, isso vai demorar muito?”. Ele respondeu que não e perguntou porque ela queria saber. “É que tô com o feijão no fogo e pode queimar”. Perguntou como ela fazia feijão ela contou, ele baixou a arma e disse: “Fica ruim feijão feito assim. Tem que....” e começou  a explicar como fazer um  bom feijão. Os companheiros terminaram a ação antes dele explicar pra mulher e foi difícil puxá-lo pra fora. Queria porque queria explicar direitinho para a mulher.  

Vixe! Tenho tanto a falar e o texto já está enorme. Paro por aqui. Mas relembro: o mundo acabou. Nós somos os que não nos salvamos.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

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