Pode ter sido num encontro de tagarelas na academia ou num papo furado da dupla de policiais em ronda pela avenida São João. Seja lá ou acolá, o mexerico era mais ou menos assim.
- Você acha cabelo branco feio ou bonito?
- Depende.
- Do quê?
- De quem tem a cabeleira. Pra mim, envelhece a mulher e dá charme ao homem.
Até em outro idioma já ouvi essa falsa verdade, que além de machista é fajuta.
Os homens estão mais vaidosos e muitos pintam o cabelo, só que boa parte ainda não aprendeu. A cor e a aparência são tão naturais quanto um salgadinho sabor bacon.
Uma historieta com laços de sangue me ajuda a explicar.
Meu tio era o homem mais bonito da família com seus cachos rebeldes e prateados. Num sábado de matinê, ele apareceu lá em casa com a juba mais preta que uma xícara de café. O bigode farto e a barba espessa também mergulharam nas trevas.
Alguém provocou: é a asa da graúna. Até hoje me pergunto qual a cor do resto do corpo da graúna, que, aliás, nunca vi em vôo, pouso ou repouso.
À medida que meus cabelos ficaram brancos e raros, percebi a transformação nos homens mais jovens.
O cobrador do ônibus pinta o cabelo de castanho-chocolate. O segurança do metrô, de preto bem preto. Éverton, escrevente de cartório, prefere o topete de fogo de Donald Trump. Rapha, barbeiro de 23 anos, toda semana troca a cor das costeletas.
A despentear a rotina, algumas mulheres, com orgulho e coragem, deixam o branco viver.
Livres da química, brotam cabeleiras brilhantes, sedosas, esplêndidas no lusco-fusco.
Ainda são poucas, as encrespadas. A maioria, ao primeiro fio branco, despeja potes de tintura. A partir daí começa a penitência: pintar o cabelo a cada quinze dias. Até o fim da vida. É prisão perpétua.
Deixo a estética e o preconceito porque gosto não se discute, nem desgosto.
A vida mostra que cabelo branco pode também ser sinônimo de credibilidade. A confiança que os mais jovens depositam num topete de algodão é surpreendente.
O rapaz de trança me pergunta que estação vem primeiro: Alto do Ipiranga ou Sacomã? Na feira, a ruiva quer saber para que lado é a Angélica, e depois se o ônibus que vai para o Paraíso desce ou sobe a avenida.
Em outra esquina, novo pedido de informação. “É por aqui que tem uma lojinha que imprime no computador?” No supermercado, a moça de Black Power quer ajuda para escolher um espumante.
Será que enxergam seriedade e conhecimento nas cabeças brancas? Mesmo sem ter todas as respostas, gosto das entrevistas. Gosto tanto que resolvi inverter.
Numa quinta-feira de chuva, preciso pegar alguns livros na casa do amigo de um amigo. Conheço melhor Jequitinhonha do que Moema. Mas, infelizmente, não é na cidade mineira que a encomenda espera por mim. Entre pagar o frete do correio e me aventurar pelo bairro paulistano, escolho a segunda opção.
Ao sair do vagão do metrô, enxergo a vistosa grisalha. Óculos vermelhos, bolsa da mesma cor, calça jeans. Antes da escada rolante, indago se ela sabe onde fica a Alameda Anapurus. A mulher me responde com uma pergunta desconcertante:
- É pássaro ou indígena?
- Não entendi.
- Aqui em Moema, de um lado da avenida, as ruas têm nome de aves; de outro, nomes de tribos.
A intuição dela indica que Anapurus é indígena. Em busca de certeza, fala com um manobrista, confirma com uma jornaleira, e assim passeamos por Moema.
Tanto eu como ela sabemos que tudo podia ser resolvido com a ajuda do celular. Porém, o que acontece ali é o encontro de duas pessoas que talvez nunca mais se vejam. Naquele momento, nos escutamos e na conversa nos entendemos.
Um aperto de mão é nossa despedida. Rita está perto de seu destino e me garante: faltam menos de 100 metros para o endereço que procuro.
Anapurus é alameda larga, de árvores frondosas. O zelador me entrega os livros, tira o boné e me enche os olhos com seu arrepiado topete de neve. Não resisto e pergunto o caminho de volta. Com o experiente Erivan não tem erro.
- Dobra na segunda à esquerda e segue. É o quarto cruzamento.
*Se você, assim como eu, ficou curioso para saber mais dos Anapurus, anote aí: o grupo indígena ainda resiste no estado do Maranhão.
*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó. O livro de crônicas foi semifinalista do prêmio Jabuti 2024.
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.