CRÔNICA

Neve no telhado

Você compraria um carro usado daquele senhor de topete grisalho?

Créditos: Luis Cosme Pinto
Escrito en OPINIÃO el

Pode ter sido num encontro de tagarelas na academia ou num papo furado da dupla de policiais em ronda pela avenida São João. Seja lá ou acolá, o mexerico era mais ou menos assim.

- Você acha cabelo branco feio ou bonito?

- Depende.

- Do quê?

- De quem tem a cabeleira. Pra mim, envelhece a mulher e dá charme ao homem.

Até em outro idioma já ouvi essa falsa verdade, que além de machista é fajuta.

Os homens estão mais vaidosos e muitos pintam o cabelo, só que boa parte ainda não aprendeu. A cor e a aparência são tão naturais quanto um salgadinho sabor bacon.

Uma historieta com laços de sangue me ajuda a explicar.

Meu tio era o homem mais bonito da família com seus cachos rebeldes e prateados. Num sábado de matinê, ele apareceu lá em casa com a juba mais preta que uma xícara de café. O bigode farto e a barba espessa também mergulharam nas trevas.

Alguém provocou: é a asa da graúna. Até hoje me pergunto qual a cor do resto do corpo da graúna, que, aliás, nunca vi em vôo, pouso ou repouso.

À medida que meus cabelos ficaram brancos e raros, percebi a transformação nos homens mais jovens.

O cobrador do ônibus pinta o cabelo de castanho-chocolate. O segurança do metrô, de preto bem preto. Éverton, escrevente de cartório, prefere o topete de fogo de Donald Trump. Rapha, barbeiro de 23 anos, toda semana troca a cor das costeletas.

A despentear a rotina, algumas mulheres, com orgulho e coragem, deixam o branco viver.

Livres da química, brotam cabeleiras brilhantes, sedosas, esplêndidas no lusco-fusco.

Ainda são poucas, as encrespadas. A maioria, ao primeiro fio branco, despeja potes de tintura. A partir daí começa a penitência: pintar o cabelo a cada quinze dias. Até o fim da vida. É prisão perpétua.

Deixo a estética e o preconceito porque gosto não se discute, nem desgosto.

A vida mostra que cabelo branco pode também ser sinônimo de credibilidade. A confiança que os mais jovens depositam num topete de algodão é surpreendente.

O rapaz de trança me pergunta que estação vem primeiro: Alto do Ipiranga ou Sacomã? Na feira, a ruiva quer saber para que lado é a Angélica, e depois se o ônibus que vai para o Paraíso desce ou sobe a avenida.

Em outra esquina, novo pedido de informação. “É por aqui que tem uma lojinha que imprime no computador?” No supermercado, a moça de Black Power quer ajuda para escolher um espumante.

Será que enxergam seriedade e conhecimento nas cabeças brancas? Mesmo sem ter todas as respostas, gosto das entrevistas. Gosto tanto que resolvi inverter.

Numa quinta-feira de chuva, preciso pegar alguns livros na casa do amigo de um amigo. Conheço melhor Jequitinhonha do que Moema. Mas, infelizmente, não é na cidade mineira que a encomenda espera por mim. Entre pagar o frete do correio e me aventurar pelo bairro paulistano, escolho a segunda opção.

Ao sair do vagão do metrô, enxergo a vistosa grisalha. Óculos vermelhos, bolsa da mesma cor, calça jeans. Antes da escada rolante, indago se ela sabe onde fica a Alameda Anapurus. A mulher me responde com uma pergunta desconcertante:

- É pássaro ou indígena?

- Não entendi.

- Aqui em Moema, de um lado da avenida, as ruas têm nome de aves; de outro, nomes de tribos.

A intuição dela indica que Anapurus é indígena. Em busca de certeza, fala com um manobrista, confirma com uma jornaleira, e assim passeamos por Moema.

Tanto eu como ela sabemos que tudo podia ser resolvido com a ajuda do celular. Porém, o que acontece ali é o encontro de duas pessoas que talvez nunca mais se vejam. Naquele momento, nos escutamos e na conversa nos entendemos.  

Um aperto de mão é nossa despedida. Rita está perto de seu destino e me garante: faltam menos de 100 metros para o endereço que procuro.

Anapurus é alameda larga, de árvores frondosas. O zelador me entrega os livros, tira o boné e me enche os olhos com seu arrepiado topete de neve. Não resisto e pergunto o caminho de volta. Com o experiente Erivan não tem erro.

- Dobra na segunda à esquerda e segue. É o quarto cruzamento.

 *Se você, assim como eu, ficou curioso para saber mais dos Anapurus, anote aí: o grupo indígena ainda resiste no estado do Maranhão.

*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó. O livro de crônicas foi semifinalista do prêmio Jabuti 2024.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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