OPINIÃO

Há democracia sem disciplina?

Estamos menos preocupados em injetar disciplina nas pessoas do que nos proteger uns dos outros e o nosso patrimônio

Imagem ilustrativa.Créditos: Pix
Escrito en OPINIÃO el

O ocaso da sociedade da disciplina está nos levando para uma outra etapa da democracia. Muitos acreditam que a produção de fake news, as posições de Elon Musk e agora de Mark Zuckerberg alheias a tal questão, estão levando a um colapso da democracia. A questão da liberdade de expressão sempre vem à tona para definir a democracia. Os neoliberais progressistas acreditam que é necessário ter um limite. Mas como haverá limites onde a disciplina não reina mais?

A etapa do capitalismo na qual vivemos é marcada pela subjetividade midiática. Discutimos sobre o que é midiático. Nos espelhamos nas celebridades (que por definição são midiáticas). Colocamos os nossos pensamentos em plataformas midiáticas (Instagram, Facebook, Whatsapp etc.). Nosso cotidiano é registrado na mídia. A maior parte das coisas que fazemos tem origem e fim midiático. Portanto, não é absurdo dizermos que vivemos em uma democracia midiática.

Essa situação é decorrente do fim da sociedade disciplinar. Estamos menos preocupados em injetar disciplina nas pessoas do que nos proteger uns dos outros e o nosso patrimônio. É nessa conjuntura que ocorre a popularização de condomínios e bairros fechados, carros blindados, senhas magnéticas, etc., “longe dos métodos mais antiquados que tentavam injetar com sangue a moral da boa letra nos corpos confinados”.[1]

Até a escola perdeu sua função disciplinar. O que mais se escuta é que a educação (que nesse caso se confunde com disciplina) vem de casa. Mas a família está atarefada, sem tempo de educar. Os pais, por sua vez, querem consumir, viver a vida, e trabalham arduamente para alcançar a promessa da possibilidade de ser feliz pela compra (e postar essa felicidade na mídia). Assim, o que resta é proteger seus filhos, não os educar (discipliná-los).

Tenta-se proibir os filhos do mundo que chega através da mídia. Jogos online, filmes violentos, influenciadores digitais duvidosos. Há também a necessidade de se proteger dos perigos da rua. Não confiar em ninguém é um dos principais lemas da cultura do medo. Todos os dias somos bombardeados por uma notícia sangrenta. A mídia sabe vender o sensacionalismo muito bem. Na ausência da disciplina, tudo se resume a proteção.

É possível democracia sem disciplina? O que não imaginávamos é que a queda da disciplina geraria, paradoxalmente, um desejo pela repressão. Os que querem liberdade querem reprimir. Tanto a liberdade quanto a repressão estão ligados a um único lugar visto atualmente como legítimo de representatividade: a mídia. Todos os espectros políticos estão preocupados com o que se passa na mídia (por isso, é um fato que as revoluções não serão “midiatizadas” - no sentido vulgar do termo). Os neoliberais progressistas querem a representatividade das minorias na mídia (liberdade de quem fala), enquanto os neoliberais conservadores querem a liberdade de expressão midiática (liberdade do que se fala). Os progressistas acreditam que as pessoas são incapazes de filtrar as mensagens que recebem da mídia, o que abre espaço para a proliferação de fake news, necessitando, assim, a repressão ao discurso inconsequente. Os conservadores, por sua vez, acham que todos estão vulneráveis a um novo estilo de comportamento que afeta a tradição na qual se apoiam e, exigem, portanto, a repressão ao discurso supostamente imoral (moralista de esquerda). Portanto, o desejo por repressão gira em torno da incapacidade de filtrar, analisar e criticar o conteúdo que circula. Mas por que as pessoas não possuem instrumentos capazes de filtrar a informação que recebem? Acredito que a falta de disciplina é um fator determinante para tal situação.

 

Mas precisamos definir que tipo de disciplina estamos falando. Em La disciplina, Antônio Gramsci distingue a disciplina burguesa da socialista. A primeira é “mecânica e autoritária”, como aquela típica da hierarquia militar: pressupõe obediência cega, que dispensa a compreensão e o sentimento dos motivos que supostamente a justifiquem. A segunda, por sua vez, é “autônoma e espontânea”, e quem a aceita “não obedece”, mas sim “[…] comanda a si mesmo, impõe uma regra de vida aos seus caprichos, às suas veleidades desenfreadas.” A obediência, nesse caso, consiste em agir “[…] segundo uma linha de conduta que nós mesmos contribuímos para traçar e manter rigidamente coerente […]”[2]

A liberdade de expressão foi criada, pensada e proclamada na era da disciplina. Contudo, tal era já passou. Michel Foucault já havia detectado o fim dessa era que, de acordo com Gilles Deleuze, deu início à sociedade de controle, o que, para Byn Chul Han, seria a sociedade da informação.

Cabe lembrar, que as redes sociais são um sintoma dessa sociedade de controle. A onipresença das câmeras nos celulares permite que todos vigiem uns aos outros, descartando a necessidade de disciplina, já que todos buscam se enquadrar em comportamentos propensos a propagação nas redes. A pseudoautenticidade é a jaula do controle. A liberdade de exposição é camuflada pela liberdade de expressão e “o smartphone se revela como um informante, que nos submete a uma vigilância duradoura”.[3] Assim, por exemplo, as empresas e as instituições públicas sugerem que seus trabalhadores fotografem tudo o que fazem. Submersos na ideologia da era do controle, colocam a melhor roupa e a melhor maquiagem para posar para foto, só para serem observados. É como mostra Han, “no regime de informação, as pessoas se empenham por si mesmas à visibilidade, enquanto no regime disciplinar isto lhes é imposto. Metem-se voluntariamente no foco de luz, até mesmo desejam isso, enquanto os reclusos do panóptico disciplinar procuram sair dele”.[4]

Antes da consolidação da era do controle, havia a aspiração de uma disciplina para a inclusão. Os serviços sociais promovidos pelo Estado de Bem-estar social buscavam incluir o maior número de pessoas. Direitos civis foram conquistados, assim como diversos direitos trabalhistas. Jock Young, que classifica a nova configuração social como “sociedade excludente”, destaca que a partir dos finais dos anos 1960, o objetivo da política neoliberal não é mais incluir, embora também não seja exterminar os pobres, mas “manter à margem e excluir”.[5] O mesmo foi constatado por Loic Wacquant, que observa a sociedade estadunidense dos finais do século XX: “a substituição progressiva de um (semi) Estado providência por um Estado penal e policial, do qual a criminalização da marginalidade e a ‘contenção punitiva’ das categorias deserdados faz às vezes de política social”.[6]

A necessidade de disciplina desaparece e, agora, predomina o vale tudo para tirar vantagens individuais e sobreviver em meio à selvageria do mercado. É cada um por si. Neste cenário, a disciplina seria importante para impor limites, não limites impostos pelo opressor sobre os oprimidos, mas limites debatidos, fixados através de diálogos, numa Ágora, que podem mudar de acordo com as contradições que movem a sociedade.

Christian Laval e Francis Vergne no livro Educação Democrática destacam um ponto interessante: “Um dos efeitos mais aterrorizantes das sociedades dominadas pelo capitalismo [...] é o da desmoralização e da desresponsabilidade dos indivíduos em relação à vida coletiva e suas obrigações”.[7] É a idiossubjetivação do indivíduo moderno que já debatemos em textos anteriores.

É possível haver democracia sem responsabilização social? Improvável. Sendo assim, a lógica do capitalismo em seu atual estado neoliberal torna a democracia inconcebível.

A única forma de salvar a democracia é o fim do modelo neoliberal de compreensão da vida. Proibir celulares nas escolas, proibir a divulgação de conteúdos absurdos e infundados, proibir as minorias de lutar por seus direitos etc., parece mais a administração de uma crise que a solução para a crise. Não conterão a morte de um corpo que agoniza já há algumas décadas. Se não desenvolvermos uma espécie de disciplina dialógica, nos modelos de Gramsci e de Paulo Freire, a democracia de fato irá desmoronar. Mas, por outro lado, se sermos vitoriosos, a democracia jamais será como antes.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

[1] SIBILIA, P. Redes ou paredes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 168.

[2] SILVEIRA, R. J. T. Disciplina e liberdade no ensino: notas preliminares para a crítica ao espontaneísmo pedagógico a partir de Gramsci. EccoS – Rev. Cient., São Paulo, n. 44, p. 289-305, set./dez. 2017.

[3] HAN, B-C. Infocracia. Petrópolis: Vozes, 2022, p. 16.

[4] Id., p. 14.

[5] YOUNG, J. A sociedade excludente. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 41.

[6] WACQUANT, L. Punir os pobres. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 19-20.

[7] LAVAL, C. e VERGNE, F. Educação democrática. Petrópolis: Vozes, 2023, p. 12.

Comunicar erro Encontrou um erro na matéria? Ajude-nos a melhorar