Análise

A política feita aos “cortes”: o monstro e suas partes bizarras - Por Raphael Fagundes

“Não posso proibir que os oprimidos com quem trabalho numa favela votem em candidatos reacionários, mas tenho o dever de adverti-los do erro que cometem, da contradição em que se emaranham” (Paulo Freire)1

Escrito em Opinião el
Doutor em História Política na UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
A política feita aos “cortes”: o monstro e suas partes bizarras - Por Raphael Fagundes
Pablo Marçal. Reprodução de Vídeo/TV Cultura

Partindo da relação entre intenção e técnica, inspirada em Ludwig Wittgenstein (que compreende a linguagem como um jogo regido por regras de modo que aquele que domina as técnicas irá jogar melhor)[1], o sociólogo Pierre Bourdieu destaca um ponto que podemos usar para pensar a política destes últimos anos. “A intenção política só se constitui na relação com um estado do jogo político e, mais precisamente, do universo das técnicas de ação e de expressão que ele oferece em dados momentos”.[2] Hoje as técnicas de ação e expressão estão condicionadas aos “cortes” das redes sociais. Será que o discurso de esquerda é capaz de se empoderar dessas técnicas sendo que elas foram criadas a partir de uma racionalidade neoliberal que visa a idiossubjetivação dos indivíduos?

Sei que muitos se inspiram no exemplo de Franz Fanon que “propõe a apropriação anticolonial de algumas tecnologias sociais introduzidas pelos franceses na Argélia, como a medicina, o jornal impresso e o rádio”;[3] e que Paulo Freire acreditava que enquanto as elites usam a tecnologia para a reificação da humanidade, o revolucionário deve usá-la para a humanização.[4] Mas a lógica das redes sociais, numa dinâmica diferente da qual Fanon e Paulo Freire estavam submetidos, permite a apropriação delas pelo discurso revolucionário?

Pablo Marçal, por meio de cortes, falas curtas e impactantes, as quais não estimulam o raciocínio e escondem a complexidade das relações sociais, nos remete a uma técnica que marcou a ascensão da burguesia: fazer os interesses de uma classe os interesses de todos.

“A burguesia”, de acordo com Marx e Engels, “por ser já uma classe [...] é obrigada [...] a dar a seus interesses particulares forma universal”.[5] E a política, a tomada do Estado, é a única forma de concretizar este projeto.

Isso é possível a partir de um processo que busca convencer o oprimido de que ele é como o opressor. Que através do seu esforço pessoal um dia ele será como o seu senhor. A fórmula é a mistificação do mundo. “De que todos são livres para trabalhar onde queiram. Se não lhes agrada o patrão, podem então deixá-lo e procurar outro emprego. O mito de que esta ‘ordem’ respeita os direitos da pessoa humana e que, portanto, é digna de todo apreço. O mito de que todos, bastando não ser preguiçosos, podem chegar a ser empresários - mais ainda, o mito de que o homem que vende, pelas ruas, gritando: ‘doce de banana e goiabada’ é um empresário tal qual o dono de uma grande fábrica. O mito do direito de todos à educação [...] O mito da igualdade de classe [...] O mito do heroísmo das classes opressoras…”.[6]

Contudo, na lógica atual da pós-verdade, os opressores não visam proibir o oprimido de falar, mas forçá-lo a produzir palavras e imagens que legitimem essa dominação. Essa lógica “tem menos a ver com a mentira do que com o ‘tudo possível’, o ‘tudo dizível’”.[7]

A pós-verdade deu espaço àqueles que não tinham acesso ao lugar tradicional de produção de verdade (universidades, grande imprensa etc.). As redes sociais precisam agora fabricar palavras e imagens (mais estas que aquelas) para lucrar e, deste modo, constitui-se uma produção em massa de gente que fala. “Nessa logorreia do ‘tudo dizível’ [...], a linguagem da pós-verdade faz proliferar as palavras, esvaziando-as de seu sentido”.[8]

Assim se propaga a ideologia de que o objetivo de todo o oprimido um dia é se tornar um opressor. É a era dos coaches. Estuda-se, cuida-se, briga-se para atingir esse fim.

O coach está submetido a essa ideologia (da classe dominante). Alienado por achar esta ideia a correta e quer impor aos outros. A reflexão de Ernest Bloch sobre a frase clássica de Marx é esclarecedora: “A ideologia, sendo as ideias dominantes de uma época, é, de acordo com a frase definitiva de Marx, as ideias da classe dominante. Porém, como também a classe dominante é alienada de si mesma, sua ideologia reflete não só o interesse em apresentar o seu próprio bem-estar como sendo o bem-estar de toda a humanidade, mas também aquela imagem da nostalgia ou da superação num mundo livre da alienação”.[9] Como destacado, a alienação da burguesia faz parecer que suas ideias também são libertadoras. Por isso, slogans com a palavra “liberdade” são tão reproduzidos pela extrema direita.

Essa técnica já foi usada na ascensão do fascismo. Os fascistas na Itália e na Alemanha, “só conseguiram enganar [a juventude revolucionária] se disfarçando de revolucionários, o marasmo como sol de primavera”.[10]

Para pôr fim a essa ideologia é preciso “a ‘expulsão’ do opressor de ‘dentro’ do oprimido, enquanto sombra invasora. Sombra que, expulsa pelo oprimido, precisa ser substituída por sua autonomia e sua responsabilidade”.[11] Destacando a questão da meritocracia como um óbice para a solidariedade, Michael J. Sandel conclui seu estudo sobre a tirania do mérito mostrando que “a convicção meritocrática de que pessoas merecem quais quer que forem as riquezas que o mercado concede a partir de seus talentos faz a solidariedade ser um projeto quase impossível”.[12]

Contudo, “uma lógica pura de solidariedade é utópica, porque não pode anular completamente os choques entre desejos e as rivalidades no interior do grupo”, mas o fato é que “quem está interessado no futuro do planeta e no prosseguimento da aventura antropológica escolhe outro mundo possível, contra o predomínio da concorrência”.[13]

Assim como o relógio foi uma tecnologia criada para controlar o trabalho, algo que não favoreceu a vida dos trabalhadores, apenas a dos patrões, as redes sociais - que possibilitam a propagação de discursos curtos, cortes soltos, à deriva, sem aprofundamento, oriundo de uma lógica neoliberal de produção que acelera a circulação de informações em quantidades cada vez maiores - tornam o pensamento complexo (como é de fato a realidade) se enfadonhos, demonizado. E o pensamento revolucionário é complexo. Não cabe na dinâmica das redes, onde “a história é suprimida ou reescrita de forma ‘simplificada e transparente’ [...] a educação deve afastar-se da perspectiva crítica” e até a relação com Deus é simplificada, sendo “reduzida a um contrato”.[14]

As redes sociais só prestariam um bom serviço à sociedade sob um outro sistema. É como disse Evgeny Morozov: “a má notícia é que, para a internet dar conta do seu potencial, o próprio capitalismo tem que acabar”.[15]

Enquanto isso não acontecer, estamos fadados a ver o nascimento de novos Pablos Marçais, que desconfigurarão contextos futuros através de cortes incapazes de agir como peças de um mosaico, que, se pensarmos nas pinturas do italiano Giuseppe Arcimboldo, só é possível imaginar a constituição de um monstro (no qual o significado do conjunto é o fascismo) formado por partes bizarras (retóricas truculentas com o propósito de nos desviar do sentido do todo).[16]

 

[1] WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 60.

[2] BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 165.

[3] FAUSTINO, D. e LIPPOLD, W. Colonialismo digital. São Paulo: Boitempo, 2023, p. 186.

[4] FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 130-131.

[5] MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 98.

[6] FREIRE, P. Pedagogia do oprimido, p. 137.

[7] CHARAUDEAU, P. A manipulação da verdade. São Paulo: Contexto, 2022, p. 165.

[8] Id., p. 166.

[9] BLOCH, E. O princípio esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, p. 149.

[10] Id., p. 118.

[11] FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia, p. 93.

[12] SANDEL, M. J. A tirania do mérito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021, p. 325.

[13] CHARLOT, B. Educação ou barbárie? São Paulo: Cortez, 2020, p. 298.

[14] CASARA, R. A construção do idiota. Rio de Janeiro: Da Vinci, 2024, p. 44-46.

[15] MOROZOV, E. Big Techs: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu, 2018, p. 25.

[16] BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 124.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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