Partindo da relação entre intenção e técnica, inspirada em Ludwig Wittgenstein (que compreende a linguagem como um jogo regido por regras de modo que aquele que domina as técnicas irá jogar melhor)[1], o sociólogo Pierre Bourdieu destaca um ponto que podemos usar para pensar a política destes últimos anos. “A intenção política só se constitui na relação com um estado do jogo político e, mais precisamente, do universo das técnicas de ação e de expressão que ele oferece em dados momentos”.[2] Hoje as técnicas de ação e expressão estão condicionadas aos “cortes” das redes sociais. Será que o discurso de esquerda é capaz de se empoderar dessas técnicas sendo que elas foram criadas a partir de uma racionalidade neoliberal que visa a idiossubjetivação dos indivíduos?
Sei que muitos se inspiram no exemplo de Franz Fanon que “propõe a apropriação anticolonial de algumas tecnologias sociais introduzidas pelos franceses na Argélia, como a medicina, o jornal impresso e o rádio”;[3] e que Paulo Freire acreditava que enquanto as elites usam a tecnologia para a reificação da humanidade, o revolucionário deve usá-la para a humanização.[4] Mas a lógica das redes sociais, numa dinâmica diferente da qual Fanon e Paulo Freire estavam submetidos, permite a apropriação delas pelo discurso revolucionário?
Pablo Marçal, por meio de cortes, falas curtas e impactantes, as quais não estimulam o raciocínio e escondem a complexidade das relações sociais, nos remete a uma técnica que marcou a ascensão da burguesia: fazer os interesses de uma classe os interesses de todos.
“A burguesia”, de acordo com Marx e Engels, “por ser já uma classe [...] é obrigada [...] a dar a seus interesses particulares forma universal”.[5] E a política, a tomada do Estado, é a única forma de concretizar este projeto.
Isso é possível a partir de um processo que busca convencer o oprimido de que ele é como o opressor. Que através do seu esforço pessoal um dia ele será como o seu senhor. A fórmula é a mistificação do mundo. “De que todos são livres para trabalhar onde queiram. Se não lhes agrada o patrão, podem então deixá-lo e procurar outro emprego. O mito de que esta ‘ordem’ respeita os direitos da pessoa humana e que, portanto, é digna de todo apreço. O mito de que todos, bastando não ser preguiçosos, podem chegar a ser empresários - mais ainda, o mito de que o homem que vende, pelas ruas, gritando: ‘doce de banana e goiabada’ é um empresário tal qual o dono de uma grande fábrica. O mito do direito de todos à educação [...] O mito da igualdade de classe [...] O mito do heroísmo das classes opressoras…”.[6]
Contudo, na lógica atual da pós-verdade, os opressores não visam proibir o oprimido de falar, mas forçá-lo a produzir palavras e imagens que legitimem essa dominação. Essa lógica “tem menos a ver com a mentira do que com o ‘tudo possível’, o ‘tudo dizível’”.[7]
A pós-verdade deu espaço àqueles que não tinham acesso ao lugar tradicional de produção de verdade (universidades, grande imprensa etc.). As redes sociais precisam agora fabricar palavras e imagens (mais estas que aquelas) para lucrar e, deste modo, constitui-se uma produção em massa de gente que fala. “Nessa logorreia do ‘tudo dizível’ [...], a linguagem da pós-verdade faz proliferar as palavras, esvaziando-as de seu sentido”.[8]
Assim se propaga a ideologia de que o objetivo de todo o oprimido um dia é se tornar um opressor. É a era dos coaches. Estuda-se, cuida-se, briga-se para atingir esse fim.
O coach está submetido a essa ideologia (da classe dominante). Alienado por achar esta ideia a correta e quer impor aos outros. A reflexão de Ernest Bloch sobre a frase clássica de Marx é esclarecedora: “A ideologia, sendo as ideias dominantes de uma época, é, de acordo com a frase definitiva de Marx, as ideias da classe dominante. Porém, como também a classe dominante é alienada de si mesma, sua ideologia reflete não só o interesse em apresentar o seu próprio bem-estar como sendo o bem-estar de toda a humanidade, mas também aquela imagem da nostalgia ou da superação num mundo livre da alienação”.[9] Como destacado, a alienação da burguesia faz parecer que suas ideias também são libertadoras. Por isso, slogans com a palavra “liberdade” são tão reproduzidos pela extrema direita.
Essa técnica já foi usada na ascensão do fascismo. Os fascistas na Itália e na Alemanha, “só conseguiram enganar [a juventude revolucionária] se disfarçando de revolucionários, o marasmo como sol de primavera”.[10]
Para pôr fim a essa ideologia é preciso “a ‘expulsão’ do opressor de ‘dentro’ do oprimido, enquanto sombra invasora. Sombra que, expulsa pelo oprimido, precisa ser substituída por sua autonomia e sua responsabilidade”.[11] Destacando a questão da meritocracia como um óbice para a solidariedade, Michael J. Sandel conclui seu estudo sobre a tirania do mérito mostrando que “a convicção meritocrática de que pessoas merecem quais quer que forem as riquezas que o mercado concede a partir de seus talentos faz a solidariedade ser um projeto quase impossível”.[12]
Contudo, “uma lógica pura de solidariedade é utópica, porque não pode anular completamente os choques entre desejos e as rivalidades no interior do grupo”, mas o fato é que “quem está interessado no futuro do planeta e no prosseguimento da aventura antropológica escolhe outro mundo possível, contra o predomínio da concorrência”.[13]
Assim como o relógio foi uma tecnologia criada para controlar o trabalho, algo que não favoreceu a vida dos trabalhadores, apenas a dos patrões, as redes sociais - que possibilitam a propagação de discursos curtos, cortes soltos, à deriva, sem aprofundamento, oriundo de uma lógica neoliberal de produção que acelera a circulação de informações em quantidades cada vez maiores - tornam o pensamento complexo (como é de fato a realidade) se enfadonhos, demonizado. E o pensamento revolucionário é complexo. Não cabe na dinâmica das redes, onde “a história é suprimida ou reescrita de forma ‘simplificada e transparente’ [...] a educação deve afastar-se da perspectiva crítica” e até a relação com Deus é simplificada, sendo “reduzida a um contrato”.[14]
As redes sociais só prestariam um bom serviço à sociedade sob um outro sistema. É como disse Evgeny Morozov: “a má notícia é que, para a internet dar conta do seu potencial, o próprio capitalismo tem que acabar”.[15]
Enquanto isso não acontecer, estamos fadados a ver o nascimento de novos Pablos Marçais, que desconfigurarão contextos futuros através de cortes incapazes de agir como peças de um mosaico, que, se pensarmos nas pinturas do italiano Giuseppe Arcimboldo, só é possível imaginar a constituição de um monstro (no qual o significado do conjunto é o fascismo) formado por partes bizarras (retóricas truculentas com o propósito de nos desviar do sentido do todo).[16]
[1] WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 60.
[2] BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 165.
[3] FAUSTINO, D. e LIPPOLD, W. Colonialismo digital. São Paulo: Boitempo, 2023, p. 186.
[4] FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 130-131.
[5] MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 98.
[6] FREIRE, P. Pedagogia do oprimido, p. 137.
[7] CHARAUDEAU, P. A manipulação da verdade. São Paulo: Contexto, 2022, p. 165.
[8] Id., p. 166.
[9] BLOCH, E. O princípio esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, p. 149.
[10] Id., p. 118.
[11] FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia, p. 93.
[12] SANDEL, M. J. A tirania do mérito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021, p. 325.
[13] CHARLOT, B. Educação ou barbárie? São Paulo: Cortez, 2020, p. 298.
[14] CASARA, R. A construção do idiota. Rio de Janeiro: Da Vinci, 2024, p. 44-46.
[15] MOROZOV, E. Big Techs: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu, 2018, p. 25.
[16] BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 124.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.
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