A ascensão da novíssima extrema direita no Brasil, exemplificada por Pablo Marçal, revela uma crise na forma como a esquerda tradicional se relaciona com a sociedade contemporânea. Presa a certezas voláteis, a campanha de Guilherme Boulos, antes vista como vitoriosa, agora enfrenta dificuldades ao lidar com um cenário político transformado pelas redes sociais e algoritmos.
A esquerda, incapaz de se adaptar a essas novas dinâmicas, perdeu relevância fora da bolha progressista. O ressentimento que antes era canalizado pela esquerda agora é capturado por figuras midiáticas como Marçal, que se apresentam como alternativas autênticas ao "sistema". Essas figuras não se destacam pela proposta de soluções, mas por ataques a adversários e pelo fortalecimento do individualismo.
Marçal entendeu que, em um ambiente saturado de informações, a verdade é irrelevante; o que importa é a capacidade de gerar ruído e mobilizar emoções. Sua ascensão reflete a transformação da política em espetáculo, onde a performance e a retórica substituem a substância. A esquerda, por sua vez, perdeu conexão com a realidade de muitos cidadãos, como evidenciado pela forma desatenta com que a campanha de Boulos lidou com a emergência de Marçal.
Durante décadas, a esquerda foi a voz dos marginalizados, canalizando suas frustrações e demandas. No entanto, com a emergência de lideranças populistas de ultradireita, a esquerda enfrenta um novo desafio: o ressentimento que antes era seu aliado agora é explorado por populistas digitais, que se apresentam como alternativas aos partidos tradicionais e à política analógica.
A comunicação digital, que poderia ter sido uma ferramenta poderosa para a esquerda, foi dominada por narrativas de direita que utilizam a polarização como meio de engajamento. Em vez de encontrar seu lugar de fala, a esquerda se tornou uma caixa de ressonância para as pautas da ultradireita, ensinando aos algoritmos que essas pautas são relevantes.
Líderes como Donald Trump e Volodymyr Zelensky também se beneficiaram desse novo ecossistema de comunicação, onde a verdade é manipulada e os sentimentos de indignação são explorados para mobilizar o ódio. Essas figuras emergem como símbolos de uma revolta contra o que é percebido como "um sistema falido". A transformação da política em uma arena de disputas emocionais representa um desafio significativo para a esquerda, que precisa reavaliar sua abordagem e retórica.
A crise da democracia e dos sistemas de representação é alarmante. Com a verdade se tornando uma commodity maleável, a política se transformou em um campo de batalha onde fatos são eclipsados por narrativas construídas para gerar cliques e compartilhamentos. Nesse novo paradigma, a capacidade de se conectar com o público não depende mais da apresentação de propostas, mas da habilidade de criar um espetáculo que atraia atenção e mobilize sentimentos.
Há algo a aprender com Pablo Marçal? Certamente. Ele construiu uma narrativa de superação pessoal que, independentemente de seu passado, cria um vínculo emocional forte com seus seguidores. A esquerda deveria investir em narrativas de vida autênticas de seus líderes, conectando suas histórias pessoais às lutas sociais e políticas que defendem.
Marçal domina as redes sociais, propagando sua mensagem de forma eficaz e alcançando uma audiência ampla e engajada. A esquerda poderia explorar novas formas de comunicação digital, criando conteúdo que viralize e engaje, usando formatos mais acessíveis e menos formais.
Marçal capitaliza em tempos de crise, oferecendo respostas simples para questões complexas. Embora a esquerda deva evitar simplificações perigosas, ela pode aprender a apresentar suas soluções de maneira mais clara e direta, evitando jargões técnicos ou acadêmicos.
Marçal mistura espiritualidade com política, criando um senso de comunidade e propósito entre seus seguidores. A esquerda poderia explorar com mais profundidade a dimensão espiritual e cultural das lutas políticas, abordando questões de significado e pertencimento, valorizando a oralidade, a arte e as narrativas comunitárias.
Marçal exibe uma presença marcante que arrebata sua base. A esquerda poderia reavaliar sua cultura fracional e investir no desenvolvimento de líderes que combinem retórica, competência técnica e carisma, capazes de inspirar e mobilizar as pessoas além dos círculos tradicionais.
A crise da esquerda não é apenas uma questão de estratégia eleitoral. Impõe uma reflexão profunda sobre os valores que sustentam a democracia e os perigos que ela corre. Para que a esquerda volte a ser a voz dos excluídos, ela deve se adaptar às novas realidades do mundo digital, enfrentando os desafios impostos pela desinformação e pela polarização com coragem e inovação. A luta por uma democracia efetiva e representativa depende dessa reinvenção, que deve ser tanto uma resposta à emergência do novo poder das redes sociais quanto um compromisso renovado com a iconoclastia que deu origem à esquerda.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.