OPINIÃO

O termostato do mundo quebrou e somos um aquário em chamas

Nosso planeta habitável está morrendo.

Sol da manhã em 11 de setembro de 2024 em Porto Alegre.Créditos: Arquivo Pessoal / Fábio Dal Molin
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“A impossibilidade de respirar aparece como um limite material universal do capitalismo petrossexorracial. Um informe da Comissão de Contaminação e Saúde da revista The Lancet, publicado em 2022, conclui que a poluição atmosférica causa 7 milhões de mortes ao ano em todo o mundo, o que ultrapassa a soma do número de vítimas anuais de coronavírus, aids, tuberculose, malária e consumo de drogas ilícitas. Wuhan está em toda parte — e estaria mesmo que não houvesse covid.”

Preciado, Paul B.. Dysphoria mundi: O som do mundo desmoronando  

Nosso planeta habitável está morrendo.

Após a segunda guerra mundial um grupo de matemáticos, neurocientistas e engenheiros  compôs uma rede de estudos comuns das novas teorias e aparatos científicos e suas aplicações na sociedade,entre as quais  estavam os aparatos bélicos, informáticos e a bomba atômica. Entre estes cientistas estavam Norbert Wiener,  Warren McCulloch (neuroanatomista criador das redes neurais artificiais) e Ludwig Von Bertanlanfy (biólogo), aos quais juntaram-se os antropólogos Gregory Bateson e Margaret Mead, entre  outros (entre eles um jovem sociólogo e filósofo chamado Edgar Morin).

Esta rede de autores acabou por elaborar uma teoria heterogênea das trocas de informações (entendida  como energia conservativa) entre os sistemas termodinâmicos. A “cibernética” como denominou Wiener, trazia a  idéia de sistemas abertos sejam eles físicos, biológicos ou sociais que, ainda organizados,  apresentaram um fluxo de energia, que, em diversos graus, provocava desordem ou degradação (entropia).  

 Os cibernéticos realizaram grandes debates envolvendo diversos campos do saber e fenômenos  contemporâneos, em encontros que foram chamados de “As Conferências Macy” . Wiener, um  brilhante e precoce matemático, escreveu, em 1950, no calor da discussão das conferências, o livro Cibernética e  Sociedade: O Uso Humano de Seres Humanos. Neste livro, a cibernética é explicitada pela sua etimologia grega  ciência do timoneiro, definida operacionalmente como a ciência do controle e da comunicação no animal e na  máquina (Wiener) postulando que uma importante diferença entre animais e máquinas é o fato dos  primeiros serem caracterizados como “vivos”, ou seja, um animal é considerado uma máquina viva com características peculiares, dentro da evolução postulada  pelo biólogo cibernético Humberto Maturana: auto regulação, auto organização autopoiese, ou organismos que se auto regulam, que produzem suas próprias regras de funcionamento e que se produzem a si mesmos,

 A ideia de um universo de interconexões de trocas energéticas aplica-se aqui a sistemas mais  amplos que as partículas, cujo padrão de trocas é estabelecido entre a manutenção do sistema a partir de  comunicações. A cibernética, nos seus primórdios, preocupou-se com a comunicação entre máquinas, bem como  sua capacidade de informar a si próprias auto regulação.  

 As máquinas entendidas como sistemas cibernéticos não interagem mecanicamente apenas a partir  de ordens diretas de um ser humano, como “ligar” ou “desligar”; suas ações podem ser determinadas pelo seu  próprio funcionamento, por escolhas da própria máquina entre o ligar e o desligar. Um termostato, por exemplo,  é a parte de um aquecedor acoplada que constitui em um termômetro que informa a temperatura externa,  delimitando a temperatura desejada pelo ser humano que o utiliza.

A máquina-viva homem não se limita a  simplesmente ligar ou desligar, ela informa ao aquecedor a temperatura que acha ideal, e o próprio aparelho, a  partir desta informação, executa as ordens de liga e desliga, mantendo a temperatura desejada. Este processo de  auto-regulação significa que o sistema é “alimentado” por informações sobre seu próprio desempenho, ou retroalimentado. Em tempos de incerteza, onda-partícula e radioatividade, Wiener chama atenção para a não linearidade dos sistemas e do caos entre suas trocas. Esta temperatura “ideal”, informada ao sistema aquecedor, é  obtida não “estaticamente” ou “mecanicamente”, como seria em um mundo ideal, no qual apertamos um botão  e, presto, chegamos aos agradáveis 23 graus Célsius.

Sendo uma casa também um sistema dissipativo aberto, em  constante troca de energia, e suas paredes e janelas regulam as entradas e saídas do ar, há uma intensa troca  energética, caracterizada pelas flutuações entre os fluxos de ar quente e frio. Se o termostato é ligado em um dia frio, e a temperatura desejada é 23 graus, mantém o aquecedor ligado fornecendo calor ao sistema até a  temperatura oscilar a 24 graus. Por suas constantes trocas, o ar dissipa o calor, descendo a temperatura até o  ideal, e continua dissipando até que, a 22 graus, o aquecedor recebe a ordem de voltar a fornecer calor.

A  temperatura marcada no termostato é decorrente de um processo de idas e vindas, oscilando em um padrão,  determinado por uma interação comunicativa: não somos matéria-prima que permanece, mas padrões que se  perpetuam (Wiener) Os seres humanos, através de seu sistema sensório-cognitivo, apresentam esta  característica em comum com os termostatos: auto-regulação. A informação, para a cibernética, é esta  capacidade de controlar a quantidade de energia em um sistema, evitando que um aquecedor emita  constantemente energia até provocar um incêndio (entropia, ou desordem do sistema) ou, pelo contrário, fique  desligado, não cumprindo sua função como aquecedor. Esta troca de informações a partir de interações, deu  origem a sistemas informativos capazes de receber informações, armazená-las e interpretá-las a partir de uma  lógica interna. A esta adaptabilidade a partir de um padrão os cibernéticos não tardaram a chamar de inteligência.  

 Uma mesma característica, então, une os animais (incluindo os humanos) às máquinas: a  inteligência. Na época em que Wiener escreveu seu livro, os primeiros computadores estavam sendo construídos,  e nascia uma nova ciência: a informática, que não lidava apenas com o processamento de informações das  calculadoras ou o armazenamento dos registros escritos, mas com o processo de interações entre processar e  armazenar.  Gregory Bateson se mostrou empolgado com a aplicação da cibernética à biologia,passando a  entender os seres vivos como sistemas abertos e auto-regulados.

A cibernética, é, então, anexada a  outra ciência sistêmica: a ecologia. Como a ecologia estuda a dinâmica de interações entre os seres vivos em um  ecossistema, tal dinâmica também obedece a um intenso fluxo de matéria e energia. E mais: a manutenção da  vida não é mais compreendida por uma tendência unicamente violenta e entrópica, sendo seus atores extintos ou  não por eliminação. A evolução passa mais a ser um processo que uma luta. Nesta perspectiva, sobrevive aquele  que é capaz de manter um padrão a partir de constantes trocas, e estas são entendidas por adaptabilidade,  assimilações e acomodações, como chamou Piaget. A junção dos termos “ecologia” e “cognição”  significou que a inteligência agora é parte integrante da definição de “vida”. Sob esta perspectiva, o cérebro é  visto como máquina capaz de aprendizagem, e o computador passa a ser visto como uma máquina capaz de  fornecer ao humano informações sobre seu próprio funcionamento.

Pois  essa história se bifurca a partir dos anos 50, quando uma parte dos cibernéticos dedicou sua pesquisa a produzir conhecimentos que pudessem proteger o conhecimento humano e a ecologia e outra parte  a fortalecer a acumulação de capital e a exploração dos recursos naturais do planeta e a ignorância humana. A segunda parte venceu, e o planeta perdeu. As máquinas cibernéticas mais desenvolvidas, criadas para proteger e ampliar o conhecimento humano, hoje são fábricas de desinformação, mentiras e destruição de sentido.  O termostato do mundo quebrou e nosso aquário está virando uma sopa e nós, os peixes, estamos cozinhando sem perceber.

Porto Alegre, quarta-feira. 11 de setembro de 2024, saio de casa para o encontro do Coletivo Rosa dos Ventos Artes Marciais  e o ar está irrespirável e preciso usar máscara para percorrer os 2 km entre minha casa e o parque da Redenção, O treino acontece no Recanto Africano, em meio a um cinturão de árvores que  no verão bloqueia o forte calor de uma selva de concreto desmatada e congestionada e agora nos protege da fumaça tóxica. Mesmo assim, é forte o cheiro de madeira queimada que atravessou o país. Uma tragédia ainda inédita em uma cidade que em  2024 foi destruída por um  tornado e quase dois meses de enchente e enfrenta o lento e persistente processo de gentrificação e verticalização.

As árvores derrubadas e queimadas não serão substituídas a tempo, as geleiras da Antártica não irão congelar novamente,  o  sol irá queimar cada vez mais até se extinguir, esse corpo que digita  está envelhecendo, perdendo cabelo e espaço articular, e irá morrer, O sabonete que está no canto do box irá derreter para o ralo e jamais será novamente um sabonete. Oppenheimer  hesitou na reta final  para o teste da bomba atômica porque havia a possibilidade de ela explodir indefinidamente até consumir todo o planeta, De certa forma isso aconteceu. 3 milhões de anos de hominização e em  quatro séculos o modo capitalista de produção a humanidade se despede de seu lar assim como em 4 anos de bolsonarismo e uma cadeirada  a democracia brasileira termina de escoar pelo ralo como um sabonete quando a maior cidade da América Latina  tem seus problemas ignorados a golpes de cadeira.

Fábio Dal Molin, psicólogo, psicanalista, professor da FURG, pós-doutorando no PPG em `Psicanálise, Clinica e Cultura da UFRGS 

@b.dalmolin