OPINIÃO

Marçal: uma cadeirada justa e necessária - por Julian Rodrigues

O estelionatário fascista precisa ser combatido, não pode ser normalizado e deve ser detido imediatamente

Créditos: Reprodução/TV Cultura
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1. Nem carinhos, nem argumentos, nem flores. Nada disso foi capaz de deter o fascismo histórico. E não faz nem cócegas no neofascismo contemporâneo. 

2. A extrema direita se fortalece em todo o mundo, cavalgando a crise do modelo capitalista neoliberal que eles mesmos promovem e defendem. Trump nos EUA ou Meloni na Itália são duas caricaturas que sintetizam esse momento de retrocesso civilizatório no qual estamos mergulhados.

3. O fenômeno bolsonarista pôde ser derrotado eleitoralmente em virtude da enorme força da classe trabalhadora brasileira organizada (sobretudo no PT) e da liderança excepcional de Luiz Inácio Lula da Silva. Mas foi apenas um breve respiro. Os neofascistas continuam fortes e na ofensiva, tanto nas redes sociais, como nas ruas e nos parlamentos. 

4.Nas eleições municipais de 2024 temos assistido variações, atualizações, adaptações e também a radicalização do movimento neofascista. O caso mais emblemático é a disputa da capital paulista. 

5. Pablo Marçal representa o ápice das ideias de extrema direita, da cultura hiper-neoliberal e do autoritarismo antidemocrático. Sem partido estruturado, sem apoio relevante no establishment político e empresarial, sem tempo de TV, sem experiência eleitoral prévia, o coach evangélico fundamentalista, que enriqueceu vendendo cursos para brancos urbanos falidos e  intelectualmente limítrofes -  tornou-se  a peça principal do  processo político-eleitoral  brasileiro neste momento.

6. Marçal é de extrema direita, mas não tem história orgânica nesse campo. Ninguém o conhece de fato e ninguém confia nele. Marçal é um noveau-riche, um social climber, longe dos centros de poder tradicionais das classes dominantes. Além de não ser paulista, mineiro, gaúcho e nem ao menos carioca, tem a audácia dos imprudentes,  a autoestima bizarra dos “social climbers”, a expertise dos estelionatários experientes e, sobretudo, a confiança dos que não têm origem nem destino.

7. São Paulo tem “a força da grana que ergue e destrói coisas belas”. Cosmopolita, vanguardista é tão rica quanto desigual. Condensa o melhor e o pior do Brasil. São Paulo é berço de lutas centenárias, epicentro das jornadas democráticas e berço do PT. E é um dos lugares mais difíceis, caros, inóspitos, brutais para os de baixo. São Paulo elegeu Luiza Erundina em 1988. Marta Suplicy em 2000. Fernando Haddad em 2012. Aqui, Lula venceu Bolsonaro no último pleito.

8. Mas São Paulo foi e também é Jânio, Maluf, Collor, Bolsonaro, Tarcísio. Foi Covas, FHC, Serra, Marta, Eduardo, Haddad e Lula. Tudo ao mesmo tempo: berço das manifestações de 2013, mas também do  “Ele não”. São Paulo, capital,  é muito menos conservadora e reacionária do que o interior do estado. 

9. São Paulo não elegeu Ricardo Nunes, mero  vereador fisiológico, medíocre, ligado à extrema direita católica, o político mais sem carisma de todo  o universo. Nunes foi uma maldição maior, a maldade suprema que o PSDB e Bruno Covas nos fizeram a todos paulistanos, nascidos ou que aqui escolheram viver. Bruno tinha câncer terminal, mas disputou e venceu as eleições de 2020. Egoísta e mesquinho, sabia que não iria sobreviver ao primeiro ano de seu mandato. Fez questão, contudo, de disputar a eleição escolhendo como seu vice e nos empurrando goela abaixo esse traste obscuro que hoje nos governa.

10.  Nunes só não é tão mal avaliado porque ninguém o  conhece.  E muito menos sabe o que ele fez ou deixou de fazer nos últimos anos. Aliás, tal grau de mediocridade está até  lhe sendo benéfica porque tem  o permitido criar um  personagem na propaganda eleitoral prefeito humilde que fez muita coisa e por alguma razão a gente não sabia ainda.

11.  Considerando as CNTP (condições normais de temperatura e pressão) o pleito paulistano seria polarizado pelo intendente bolsonarista apoiado em busca da reeleição versus  o desafiante de esquerda. O direitista com apoio de Bolsonaro e do governador Tarcísio, o progressista com apoio do presidente Lula e dos movimentos sociais.

12. Marçal chegou chutando tudo, bagunçando o cenário. Mais à direita que o próprio Bolsonaro, radicalmente oportunista, sem vínculos orgânicos com a burguesia ou a grande mídia.  Chegou chutando tudo, sem peias, sem nenhum compromisso com a própria estrutura do sistema eleitoral burguês. Tão arrogante, agressivo, pretensioso e disruptivo que causou e causa perplexidade generalizada. Enquanto isso vai avançando sobre um eleitorado sedento de novidades, cansado da direita tradicional, totalmente antipetista. Na prática, Marçal é um candidato mais bolsonarista do que o bolsonarismo veio a se tornar.

13. Enquanto isso, a candidatura de Guilherme  Boulos fez um aggiornamento de imagem e programa tão significativo que chega a confundir sua base social, militante e eleitoral.  A ponto de termos que assistir à insossa Tabata Liberal protagonizar os ataques mais duros contra Marçal. Fica difícil entender e se identificar com esse Boulos que está sendo vendido na atual campanha. Há até memes comparando-o com personagens daquele desenho “ursinhos carinhosos”. 

14. Todavia, há (ou havia) outro personagem que se queria outsider, o carismático apresentador de programas policialescos, José Luiz Datena. Ele, que em toda eleição brincava de ser candidato e depois recuava, resolveu se lançar de verdade  justamente na disputa mais complicada para ele. Afinal, o completo  espectro da direita está preenchido  (Marçal, Nunes, Tabata, Marina Helena).

15. Todas as pesquisas têm indicado que Boulos está no segundo turno e, provavelmente, seu adversário será o atual prefeito. Datena e Tabata têm caído. Marçal estagnou (e pode vir a cair mais, intuo).

16. Ocorre que Marçal desde o início mostra que não joga conforme nenhuma regra. Perto dele, Bolsonaro parece um cara até razoável, um tiozão do churrasco que exagera de vez em quando. Há, aliás, uma diferença que me parece estrutural entre o bolsonarismo e o marçalismo. A liderança do ex-capitão foi construída em mais de duas décadas de atuação parlamentar e por meio de uma relação orgânica com as Forças Armadas. A adesão de Bolsonaro ao liberalismo tosco de um Paulo Guedes sempre pareceu tática de ocasião. Já Marçal é vinculado às ideologias mais radicalmente antiestado, pró-mercado, pró-individualismo. Um coach-pastor.  Mix muito bem costurado.Teologia da prosperidade com autoajuda rudimentar para bobalhões brancos héteros das classes médias pouco instruídas -  mas muito ambiciosas. E, sobretudo, ressentidas.

17. Marçal pode ir ao segundo turno. E, se for, tende a vencer Boulos. Na dúvida, tentarão “passar um pano” e vendê-lo sem dentes, quase fofinho. Como já fizeram com Bolsonaro, aliás... Deu no que deu.

18. Sim, existe um mal-estar no ar hiperseco destes dias na paulicéia desvairada. As elites preferem Nunes, obviamente. Mas, antes de qualquer coisa, são pragmáticas e essencialmente anticomunistas, antipetistas, antipovo.  Na dúvida, perfumam o Pablo e o chamam de bebê fofo. Tudo em nome de derrotar o invasor de casas barbudo e mal humorado e ainda por cima apoiado por Lula.

19. E a cadeirada, afinal? Antes disso, uma nota rápida sobre os debates. A cada nova disputa eleitoral se tornam menos úteis, mais monótonos e muito mais palco pra cortes em redes sociais e no velho e bom horário eleitoral gratuito.

20. Muito cedo ainda o é para qualquer avaliação peremptória sobre o “efeito cadeirada”. Datena se permitiu esse ato extremo porque já era desde sábado um ex-candidato vivo, um zumbi. Parece que se arrependeu de não ter desistido dessa vez. Aliás, um cara com  a idade, o salário e o prestígio dele não tem nada a ganhar se enfiando em disputas eleitorais acirradas. Datena é o candidato do PSDB, o que torna tudo mais patético e trágico também. Triste e doloroso fim do partido de Montoro, Covas, Serra e Alckmin.

21. Isso tudo posto, a cadeirada foi, além de divertida, didática. Simboliza um chega, um gesto radical, mas imprescindível. Pode gerar algo como um “freio de arrumação”. Ou não. Mas, no mínimo, gerou centenas de memes e muita diversão gratuita. E duvido que algum ser humano tenha tido peninha do Pablo. O imponderável nunca nos abandona, o que torna as coisas menos monótonas, afinal.

22. E que a campanha de Boulos melhore, seja mais politizada, combativa e programática. Com muito mais PT, mais Lula, mais Marta, mais mobilização social. E, sobretudo, muito mais propostas objetivas para melhorar a vida das  massas trabalhadoras de São Paulo.

Julian Rodrigues é licenciado em Letras (UFV), mestre em ciências sociais pela UFABC, doutorando em estudos latino-americanos pela USP, ativista LGBTI e de Direitos Humanos.

 

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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