Em 2000, 60% da população viam na democracia a forma preferida de governo. Em 2023, caiu para 48%. As mulheres são as mais insatisfeitas, assim como a população de baixa renda. Isso tem implicações no tecido social, criando o cenário para o avanço de discursos populistas de extrema-direita e para o crime organizado.
O relatório do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) afirma que a polarização política é principal barreira para cooperação e crescimento de IDH no mundo. Quando todos falam e ninguém ouve, não há novas sínteses. E o progresso social estanca.
O cenário bipolar mostra, de um lado, a ascensão de líderes populistas de extrema-direita, com discursos xenófobos e racistas; e do outro, o fortalecimento de movimentos de esquerda fincados no identitarismo. Opostos, divergentes, mas dois lados de uma mesma moeda, a da polarização.
O filósofo Mark Lilla e o cientista político Yascha Mounk vem se dedicando a analisar esse fenômeno. Ambos argumentam que a "política da identidade" e o populismo de extrema-direita estão na base desse antagonismo e erodem os valores fundamentais da democracia, conduzindo setores progressistas a um beco sem saída.
Lilla critica a esquerda identitária por focar demais em questões de raça, gênero e sexualidade, negligenciando as questões econômicas e sociais que afetam a todos. Essa fragmentação dificultou a construção de uma alternativa política unificada, permitindo que a extrema-direita, com seu discurso simplista, ganhasse força.
Mounk observa que o populismo de extrema-direita, ao semear o individualismo e explorar o ressentimento e o medo em relação a mudanças sociais e econômicas, avança sobre setores empobrecidos. A base é uma narrativa que culpa minorias e imigrantes pelo agravamento dos problemas sociais, promovendo um nacionalismo excludente e martelando o discurso do "nós contra eles".
Ambos os fenômenos intensificam a polarização política e aprisionam a sociedade nela. A esquerda identitária, ao se concentrar em questões específicas, estreita o horizonte e promove uma visão fragmentada da problemática social, enquanto a extrema-direita alimenta o ódio e a intolerância, dificultando a construção de uma sociedade minimamente democrática e inclusiva.
Essa polarização tem consequências graves para a estabilidade democrática. À medida que a sociedade se fragmenta, o diálogo e a resolução pactuada de conflitos são enfraquecidos e as instituições são desacreditadas, aumentando o risco de confrontos violentos e da imposição de regimes autoritários.
Tanto a esquerda identitária quanto a extrema-direita populista precisam ser confrontadas na busca por uma alternativa que supere a polarização. Lilla e Mounk defendem uma "política do universal", focando nas questões comuns à sociedade, em vez das identidades específicas.
Para a esquerda, desde sempre, “política universal” é luta de classes, a percepção basilar de não se trata de gerar “oportunidades” apenas, mas de mudar o modo de produção e apropriação da riqueza social. Em uma sociedade que perpetua a desigualdade, temos que escancarar que o conflito que origina todas as injustiças individuais começa com a divisão entre os donos do capital e os despossuídos. A expansão capitalista é a causa da exclusão, do racismo, da pobreza, da misoginia e da degradação ambiental. Ser anti-sistema no século XXI implica retomar essa fala.
A retórica da luta de classes preserva a atenção às questões identitárias, integrando-as com uma agenda mais ampla, que atende às necessidades da maioria, especialmente trabalhadores e grupos precarizados que têm se voltado à extrema-direita. Isso não significa ignorar as demandas de grupos minoritários, mas integrá-las em uma visão horizontal, segundo a qual nenhuma das questões parciais se resolve nesse modelo de produção excludente.
A abordagem da luta de classes supera a fragmentação identitária e enfrenta os discursos populistas, apontando para os explorados uma saída inclusiva e que deve, necessariamente, conduzir à prosperidade individual e coletiva. O desafio é difícil, mas a alternativa é pior - a barbárie, o aprofundamento da polarização e o colapso democrático, quando aqueles que não se ouvem começam a trocar tiros.