OPINIÃO

Silvio Almeida: crime e castigo nos lutos e lutas da esquerda brasileira

O luto é um tipo de psicose temporária, onde nossa realidade psíquica que ainda entende o objeto como presente entra em conflito com o vácuo deixado pela realidade externa

Silvio Almeida.Créditos: Ruy Conde/Ascom MDHC
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No dia 05 de setembro a esfera pública e política, em especial a esquerda brasileira e o campo acadêmico e progressista perderam um de seus maiores e mais brilhantes expoentes, o ministro  dos direitos humanos Sílvio Almeida.

Na matéria do jornal Metrópoles assinada por Guilherme Amado, Bruna Lima. Eduardo Barreto e João Pedroso de Campos, da ONG Me Too, acusam Almeida não só de ser um assediador sexual e moral recorrente, mas também de assediar sua colega ministra Anielle Franco, outra grande expoente política, tanto pelo seu lugar no Governo Lula quanto por ser irmã de Marielle Franco.

Eu, que já havia sofrido a decepção com o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, também via no agora ex-ministro uma grande inspiração e referência de potência intelectual, coragem e virtuosidade agora preciso, junto com toda a intelectualidade de esquerda, fazer o luto.

Freud, em seu texto “Luto e Melancolia”, trata o luto com um processo de perda de um objeto, que não é necessariamente algo do mundo concreto, mas sim um objeto de investimento parcial onde projetamos nossas fantasias, sentimentos e nossa energia psíquica.

O luto é um tipo de psicose temporária, onde nossa realidade psíquica que ainda entende o objeto como presente entra em conflito com o vácuo deixado pela realidade externa.

Avançando no tempo nas obras Freudianas, para a “Psicologia das Massas e Análise do Eu”, Silvio Almeida era uma espécie de pai, de líder de uma massa política que ainda vive um ambiente de medo e ansiedade e que se identificava com ele, e de certa forma todos nós estávamos com nossos eus amalgamados neste ideal de virtuosidade e combate ao racismo e as desigualdades sociais.

Como Freud comparava essa identificação das massas ao líder com o hipnotismo, eu, que por muitas vezes o citei em meus artigos e aulas, que sentia orgulho de ter no Brasil alguém da envergadura de Achille Mbembe ou mesmo Franz Fanon, agora desperto do transe como aqueles hipnotizados clássicos que eram iludidos a comer uma cebola crua pensando em ser uma maçã.

Mas de onde vem essa ilusão e essa decepção? 

Uma de minhas hipóteses vem do próprio livro do ex-ministro, “Racismo estrutural”, especialmente quando levamos em conta o conceito de estrutura. Silvio Almeida é um homem negro e tem no seu currículo incontáveis contribuições a defesa dos direitos humanos e da luta antirracista, mas ainda assim é um homem de 45 anos, que fez graduação, mestrado, doutorado, é professor universitário e é ministro.

O mundo dos homens, da política e da academia não apenas é estruturalmente racista, mas também machista, misógino e masculino.

Nós homens, especialmente da nossa geração (onde estou também inserido, pois tenho 49 anos) vivemos imersos neste ambiente tóxico de relações de poder e subjugação das mulheres, e mesmo nós, que de alguma forma tentamos superar isso com nossa militância e com toda essa formação acadêmica, seguimos sendo homens e todo o estudo, a filosofia não são nada além de um leve verniz social sob o qual pulsam os piores e mais mesquinhos sentimentos.

É disso que a obra freudiana trata, especialmente em “O mal estar na cultura”, e é disso que tratam dois escritores que partilharam do mesmo século IX de Freud, um deles negro: Machado de Assis e Fiódor Dostoievski

Machado de Assis foi autor de uma obra revolucionária na história da literatura: Memórias Póstumas de Brás Cubas. 

Em sua funérea narrativa, Brás Cubas delineia a constrangedora saga de um burguês medíocre, mesquinho, um dândi vagabundo e de vida fácil, absolutamente desprovido de moral e consciência. Filho de uma elite abastada, o personagem, ao longo de sua vida usufrui e corrói a fortuna de seu pai enquanto experimenta diferentes carreiras profissionais fracassadas e relações amorosas inconclusas, cujo abandono é justificado por um cinismo mórbido, ressentido e corrosivo.

Em algum momento do romance Brás Cubas se apaixona por uma linda mulher, cujo único defeito é ser manca, e sua narrativa da relação é repleta de amor e paixão, mas sempre atravessada pela ideia fixa em torno do defeito físico da amada, culminando no seu abandono lento e absolutamente inescrupuloso e sutil, como se claudicasse em reconhecer que de fato a rejeitara.

Nosso mais famoso Zumbi abre o romance com uma dedicatória: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança, estas memórias póstumas”. Uma espécie de alívio autopunitivo, porém desprovido de culpa, afinal, apenas depois de morto o canalha decide narrar sua farsa biográfica.

Machado de Assis (como Sílvio Almeida) era negro,  nasceu pobre e adquiriu prestígio, dinheiro e posição social com seu próprio talento e disciplina, em uma época em que nosso país ainda vivia na escravocracia e era comum membros da elite decadente viverem de favor ou adquirirem lugar social pela bajulação.

“Memórias Póstumas” é uma espécie de desabafo escrito como contraponto a seus colegas de juventude, os escritores e poetas românticos, divididos entre narrativas nacionalistas e ufanistas ou heróis do estilo mal-do-século, a maioria mortos ainda na juventude. Pois o principal sobrevivente da geração romântica carregou seus contos, crônicas e romances de uma aguda e ferina crítica dos costumes, e não é à toa que tenha se tornado o grande expoente do chamado realismo. E a “realidade realista” cínica e pragmática do Brasil talvez tenha mudado muito pouco desde então, como Brás Cubas exemplifica na sua teoria das janelas, na qual sempre que se fecha uma janela é preciso abrir outra.

A teoria das janelas surge em minha passagem preferida do livro, a meu ver a síntese de no que a esquerda brasileira se tornou ao assumir a presidência da república no Brasil. Na ocasião, Brás Cubas andava pela rua e encontrou uma moeda e uma meia dobra de ouro: 

“Nessa noite não pensei mais na moeda; mas no dia seguinte, recordando o caso, senti uns repelões da consciência, e uma voz que me perguntava por que diabo seria minha uma moeda que eu não herdara nem ganhara, mas somente achara na rua. Evidentemente não era minha; era de outro, daquele que a perdera, rico ou pobre, e talvez fosse pobre, algum operário que não teria com que dar de comer à mulher e aos filhos; mas se fosse rico, o meu dever ficava o mesmo. Cumpria restituir a moeda e o melhor meio, o único meio, era fazê-lo por intermédio de um anúncio ou da polícia. Enviei um carta ao chefe de polícia, remetendo-lhe o achado, e rogando-lhe que, pelos meios a seu alcance, fizesse devolvê-lo às mãos do verdadeiro dono. Mandei a carta e almocei tranqüilo, posso até dizer que jubiloso. Minha consciência valsara tanto na véspera, que chegou a ficar sufocada, sem respiração; mas a restituição da meia dobra foi uma janela que se abriu para o outro lado da moral; entrou uma onda de ar puro, e a pobre dama respirou à larga. Ventilai as consciências! não vos digo mais nada. Todavia, despido de quaisquer outras circunstâncias, o meu ato era bonito, porque exprimia um justo escrúpulo, um sentimento de alma delicada. Era o que me dizia a minha dama interior, com um modo austero e meigo a um tempo; é o que ela me dizia, reclinada ao peitoril da janela aberta.”

Alguns dias depois, caminhando pela praia em Botafogo, nosso herói tropeça em um misterioso embrulho. Como não havia ninguém por perto, resolve levá-lo para casa e verificar seu conteúdo: cinco contos de réis, que fazem novamente seu pensamento vibrar e refletir moralmente e finalmente agir da maneira mais sensata e pragmática possível. 

“Não se perdem cinco contos, como se perde um lenço de tabaco. Cinco contos levam-se com trinta mil sentidos, apalpam-se a miúdo, não se lhes tiram os olhos de cima, nem as mãos, nem o pensamento, e para se perderem assim totalmente, numa praia, é necessário que... Crime é que não podia ser o achado; nem crime, nem desonra, nem nada que embaciasse o caráter de um homem. Era um achado, um acerto feliz, como a sorte grande, como as apostas de cavalo, como os ganhos de um jogo honesto e até direi que a minha felicidade era merecida, porque eu não me sentia mau, nem indigno dos benefícios da Providência. – Estes cinco contos, dizia eu comigo, três semanas depois, hei de empregá-los em alguma ação boa, talvez um dote a alguma menina pobre, ou outra coisa assim... hei de ver... Nesse mesmo dia levei-os ao Banco do Brasil. Lá me receberam com muitas e delicadas alusões ao caso da meia dobra, cuja notícia andava já espalhada entre as pessoas do meu conhecimento; respondi enfadado que a coisa não valia a pena de tamanho estrondo; louvaramme então a modéstia, – e porque eu me encolerizasse, replicaram-me que era simplesmente grande.”

Fiódor Dostoiévski escritor russo, autor de obras como Crime e Castigo, Os Irmãos Karamazov, O Idiota, é considerado um dos maiores expoentes da literatura mundial ao lado de Shakespeare, Proust, Tolstói, entre outros. Sugiro, para começar, “Notas do Subsolo” e “Memórias da casa dos Mortos” (que estou lendo agora). São baratinhos e fáceis de ler. “Notas do Subsolo”, ou dependendo do tradutor, “Devaneios do subterrâneo”, “Notas do subterrâneo e por aí vai”, doravante o título, me puxou para o andar de baixo, ou pelo menos mostrou o chão que está acima de mim.

O filósofo Mikhail Bakhtin construiu uma grande obra inspirada no escritor russo Dostoiévski, considerando seus romances polifônicos e dialógicos, polifônicos pelo fato de o escritor ser uma espécie de consciência das consciências de seus personagens, que, segundo Bakhtin, adquirem independência no discurso ... dialógicos pelo fato de os personagens, alguns formadores de um discurso próprio, teórico, e que produz fissuras nos outros personagens, e no caso do “Notas ...’, no próprio leitor. O livro começa com um diálogo direto do personagem, que não possui nome, com o próprio leitor, onde ele apresenta “o subsolo”, ou seja, o lugar de onde ele se posiciona, sua visão de mundo, seu estado de espírito.

“Sou um homem doente, sou mau”, é a primeira frase do texto, e prossegue um diálogo cuja tônica é habitar o subsolo, o subterrâneo, o lugar do discurso além da moral, em que o personagem se mostra como herói como questionador da humanidade da hipocrisia, mas ao mesmo tempo se acovarda ... Ele chega a dizer: “Pressupomos que o homem seja inteligente, pois se ele for idiota, quem mais consideraremos inteligente?”. Define o homem como um ser “bípede e ingrato", assume a postura de subsolo ainda que no final, diga que não acredita em UMA palavra que escreveu, e, na conclusão escreva as incríveis palavras: “é melhor não fazer nada! É melhor a inércia consciente! Pois, então viva o subsolo! Apesar de eu ter dito que invejo o homem normal até a minha última gota de fel, nas condições em que o vejo, não quero ser ele” ...

Silvio Almeida é, como todos nós homens, uma criatura do subsolo, mas é um homem superior colocado em uma posição de poder como poucos homens como ele em nossa história.

Intelectual como é, certamente leu Dostoievski, em especial a obra mais citada do autor russo em cursos de direito “Crime e Castigo”, onde a personagem Raskolnikov, um jovem sofredor, desesperado e febril, cria uma teoria onde os maiores e mais importantes homens da humanidade, como Julio César ou Napoleão, deveriam ter seus crimes absolvidos como compensação por seus grandes feitos.

A dialogia de Dostoievski encontra aqui o cinismo de Machado de Assis, pois Raskolnikov cria sua teoria ao premeditar o assassinato vil e cruel de sua credora, uma velha usurária que ele hipocritamente considera dispensável e inútil, como Silvio Almeida também procurou desqualificar suas vítimas, em especial a mais exemplar e sofrida de todas, sua companheira Anielle, que confiava nele e o admirava.

E o que mais dá raiva: enquanto eu escrevo essas palavras o Brasil está em chamas pela seca na Amazônia e pelas queimadas criminosas do agronegócio que é responsável por 74 por cento das emissões de carbono do maior país da América Latina. Já faz uma semana que Porto Alegre saiu da inundação para a fumaça tóxica. 

O Brasil está irrespirável.

“Apesar de eu ter dito que invejo o homem normal até a minha última gota de fel, nas condições em que o vejo, não quero ser ele”. Fiódor Dostoievski

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.