No dia 19 de setembro, se vivo estivesse, o educador Paulo Freire estaria completando 103 anos de idade. Mas seres de luz, como ele, não morrem, viram estrelas e referências atuais para a ação de muitos tantos outros que por aqui continuam nele se inspirando.
Paulo Freire é hoje patrono de nossa educação brasileira, título a ele concedido no ano de 2012, e referência mundial pela obra que por aqui nos deixou. Suas contribuições versavam, principalmente, sobre o campo da filosofia da educação e, quase como uma cereja nesse enorme bolo pelo qual o parabenizamos, ele também nos legou um rico método de alfabetização de adultos.
Pelo poder da palavra, o método Paulo Freire, como ficou conhecido, pretende-se instrumento de transformação tanto do educando como também do educador. Só assim, pretendia Freire, seria possível mudar o mundo.
As referências dessa pedagogia freireana terminaram por iluminar práticas políticas muito além das pretendidas e focadas somente no campo educacional. A ideia de participação social, que contaminou e forjou o caldo político e cultural brasileiro das últimas décadas do século passado, momento pelo qual nosso país experimentou um rico processo de redemocratização, foi a que impulsionou a mobilização do conjunto dos movimentos sociais brasileiros para que incluíssemos, no texto da nossa Constituição Cidadã de 1988, o instrumento de participação social na formulação de nossas principais políticas públicas e sociais.
E assim se deu na constituição do Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo. Pela fonte de Paulo Freire, o nosso SUS, única experiência no mundo que oferece uma saúde pública, gratuita e universal em um país com mais de 100 milhões de habitantes, é tributário dessa noção de participação social que Freire inspirou.
A legislação que cria o SUS garante a participação da comunidade por meio da Conferência Nacional de Saúde e nos conselhos, que existem em todos os estados e municípios, além do Distrito Federal. São nesses espaços que a população tem voz para propor políticas e fiscalizar o empenho de recursos públicos em suas cidades.
E toda essa estrutura de governança que o SUS possui, a partir das formulações feitas ao longo dos anos da década de 1980, foi reproduzida em inúmeras outras políticas públicas brasileiras.
Assim se deu com as políticas de assistência social, com o seu Suas (Sistema Único de Assistência Social), as de direitos da criança e do adolescente, as de emprego, trabalho e renda e, não seria diferente, com as políticas públicas educacionais brasileiras.
A mesma lógica de construção das políticas, a partir de uma pactuação interfederativa (cada ente se responsabiliza com a oferta de algum nível do serviço), foi reproduzida para a área da educação. E sempre ancorada, desde a formulação da política, pela ideia da participação social.
Se nossos direitos foram garantidos, e ainda o são em grande medida até os dias de hoje, pela participação social e popular, não devemos, assim, nunca prescindir desses instrumentos para, em nossas mãos, tomar os rumos da educação, de nossa escola e do próprio futuro do país. A escola e a educação que queremos para nossos filhos e netos exigem o esforço de nossa participação. A grande conquista, na política educacional, dessa ideia de participação social vem no que ficou conhecido e consolidado pela noção de gestão democrática.
E o que seria a gestão democrática e como isso foi uma construção da ideia inovadora que Paulo Freire imprimiu? A gestão democrática na escola brasileira é uma conquista também daqueles processos vivenciados quando o país inteiro se mobilizou para a construção da Constituição de 1988.
Trata-se de um princípio constitucional que, inserido no texto de nossa legislação maior (inciso VI do artigo 206 da Constituição brasileira), preconiza o projeto político-pedagógico que almejamos enquanto sociedade. Todas as dimensões da escola podem e devem ser construídas pela comunidade escolar: professores/as, funcionários/as da educação, pais, mães e responsáveis, estudantes e todos/as aqueles/as que vivem o entorno da escola devem se apropriar desse espaço.
Não é por acaso que a educação é e sempre foi alvo, não somente agora, de ataques de fundamentalistas religiosos e da extrema direita. A educação livre e emancipadora, proposta por Paulo Freire e construída a partir das premissas de uma forte e mobilizadora participação social da comunidade, ameaça o pensamento único e fomenta a crítica e a transformação social.
Por isso eles atacam tanto a educação pública: defendem educação domiciliar para tentarem, assim, domesticar e blindar os estudantes das utopias que movem o mundo. Querem cordeiros e carneiros obedientes, cegos para a possibilidade de um mundo novo.
Nesses 103 anos de Paulo Freire, nosso principal desafio no campo educacional é consolidar esse legado de participação social na política pública. É urgente consolidarmos, a exemplo do que se tem no SUS (saúde) e no Suas (assistência social), o nosso Sistema Nacional de Educação (SNE), com o fortalecimento das premissas de participação social.
Para além de todas as questões relacionadas ao pacto federativo e ao seu arcabouço de financiamento, o SNE deve promover e garantir a participação social nos espaços escolares, hoje tão ameaçados com projetos, por exemplo, de militarização escolar. E, para isso, é fundamental o empenho do governo federal para acelerar esse processo que já, há anos, caminha a passos de tartaruga.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.