“A invenção do computador, o hiv, o vírus informático, tudo isso foi possível neste e somente neste novo paradigma comunicacional, no qual o carbono e o silício deixaram de ser mutuamente excludentes para se tornar parte de um mesmo sistema econômico e político global. Era precisamente aí que a mutação estava sendo levada a cabo. Esta é a realidade viral na qual vivemos hoje. Por isso, Wuhan está em toda parte.” Paul Preciado
Quem viveu nos anos 70 e 80 no Brasil como eu observa a era das redes sociais como a verdadeira psicodelia experimentada nas artes do final de uma década anterior ao meu nascimento, os anos 60. Na música “A day in the life”, do disco Sargent Peppper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, John Lennon e Paul McCartney descrevem harmonicamente um mundo “careta”, sisudo e monocromático de um inglês comum que entra em um sonho multifacetado e polifônico. No entanto, a polifonia não é de sentidos, como se ainda imaginássemos uma realidade dicotomizada de sua representação. É uma polifonia de realidades.
O biólogo Humberto Maturana, em seu livro “A ontologia da realidade” contrapõe duas noções de realidade. A primeira é a Universal, na qual existe um mundo a ser captado pelos sentidos ou meramente acessível a nossa cognição. A segunda realidade é a multiversal, cada observador produz em seus domínios seu próprio universo, que transversaliza os demais universos de outros observadores a partir de coordenações, perturbações mútuas, redes de conversações.
Até os anos 90 os meios de comunicação operavam em uma realidade Universal, que o filósofo profeta da internet Pierre Levy chamou de “um para muitos”. Uma mensagem produzida e meramente transmitida a aparelhos receptores. Levy contrapôs o modelo da transmissão-recepção universal para o de “muitos para muitos”, a utopia da horizontalidade das redes, de um imenso debate em que todos os cidadãos poderiam compartilhar suas opiniões e visões de mundo em uma grande comunidade debatedora.
O espaço virtual da Internet inaugura a discussão sobre uma "realidade" ontológica multiversal. Não há dicotomia entre o "fato" e sua "representação". Contrariamente ao que costumamos vociferar em nossa esfera virtual é que a "grande mídia" manipula os "fatos" e seus respectivos "receptores". isso é um engano. O que chamamos de realidade é uma multiplicidade de ideologias, um embate semiótico de ontologias acopladas, ou, como diz Maturana, um multiverso. O que chamamos de manipulação, na verdade é um problema de Ecologia Cognitiva como colocou Gregory Bateson algumas décadas atrás: os grandes órgãos de imprensa na democracia capitalista sempre se comportaram o como empresas de publicidade querendo vender produtos. Hoje, 2024, a realidade é um produto segmentário e, ao contrário da antiga mercadoria, não é procurada pelo consumidor, mas o procura, ou produz em um simulacro de dialética. A chamada calcificação das plataformas não faz diferença entre o consumidor e a mercadoria, ou pior, coloca o consumidor como objeto mais valioso do que aquilo que ele consome.Nosso conceito de realidade em um mundo digitalizado e governado pela lógica dos vírus: códigos que contaminam hospedeiros e os obrigam a sintetizar suas proteínas . Não há uma verdade sendo manipulada, há uma ideologia sendo produzida por simbiose.
O corpo e o governo da linguagem viral
Nosso corpo vem de uma única célula que cumpre um programa genético específico, porém em interface membranosa com um “fora” que nos penetra em diferentes modos de invaginação, desde as entradas e saídas de substâncias da célula, suas excreções até a formação de um corpo complexo dotado de pele, pulmões, sistema digestivo, visão e audição. Em muitos níveis de percepção o “dentro” e o “fora” não são distinguíveis, mas nesta “realidade” vivida existe o “dentro” e o “fora” do corpo.
A questão epistemológica é que só posso escrever ou pensar nesta realidade a partir de um ponto de vista filosófico ou científico, que são sistemas de linguagem. Esta está inscrita em um bordado de significações que pertencem a minha cultura, minha sociedade e à maneira como eu sou capaz de operá-las desde que iniciei o desenvolvimento daquilo que alguns chamam de mente, alma, psiquê, sistema cognitivo, mundo vivido etc. Este mundo colocado em pensamentos, conceitos e palavras é um mundo que posso transitar no tempo, no espaço, mas memórias, nos textos, na internet e em tudo mais da produção humana. Esse trânsito existe no registro do simbólico.
Estamos mergulhados na (ou melhor pela) linguagem, e não foi uma tarefa fácil chegar a esse ponto partindo de uma criatura nascida apenas com células. Entre os seminários 05 e 06, Jacques Lacan toma as formações do inconsciente ao desejo e sua interpretação para formular o seu grafo, que parte da criança mítica que “é desejada” para o sujeito que deseja intransitivamente.
No mundo dos adultos, mergulhados plenamente na linguagem, a realidade é plena de segurança ontológica: vivemos neste mundo, neste universo, nesta “realidade” e ela sempre foi assim, em termos individuais e coletivos; todos nós temos uma história que nos trouxe aqui e vivemos em uma vida “normal” e os eventos estranhos a esta realidade psíquica vivida são anomalias, doenças, pandemias, contaminações.
Pois é justamente o oposto, o enxerto de um sistema simbólico como o que vivemos, representa uma intrusão radical, uma fenda sígnica tão grande que faz com que tenhamos que recorrer às palavras e conceitos para entender nosso próprio corpo ou mesmo o ar que respiramos, e o fazemos de maneira extremamente precária, visto que o sistema simbólico mais confiável para isso, a ciência, com todas suas vicissitudes, existe há poucos séculos em uma humanidade que está aqui há milênios. Language is a virus3, diz a música de Laurie Anderson, conceito extraído de William Burroughs e retomado no último livro de Paul Preciado “Dysphoria mundi”.
Lacan afirma quase o mesmo no Seminário 23: “A questão é antes saber por que um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, a fala é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido” .
Preciado chama atenção para a genealogia do conceito de “adicção” relativo as drogas (Burroughs era um usuário pesado e escreveu muito sobre isso ver “Junkie” e “O Almoço nu”). No direito romano as dívidas podiam ser pagas com escravidão, e o devedor era “adicionado” permanentemente a família do credor, assim como a substância química, que é algo externo mas que se adiciona permanentemente ao “adicto” e passa a controlá-lo. Em “Almoço Nu” Burroughs em algum momento chega a comparar os viciados aos esquizofrênicos, dizendo que os primeiros correm mais riscos de morte, porque as alucinações e delírios põem leva-los a morrer de inanição, enquanto que os segundos movimentam suas vidas, relações sociais, trabalho para poder consumir. Foi também recorrendo a Burroughs que os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari explicaram a passagem do conceito de disciplina para o de poder em Foucault. A disciplina implica em contenções físicas, paredes, grades, fábricas. O poder implica em mecanismos muito mais biológicos, relações complexas que contaminam as entranhas. Hoje acordamos de manhã e a primeira coisa que fazemos é passar a revista em Instagram, Facebook, X e Whastapp, e ninguém nos obriga a fazer isso como eramos obrigados a comer verduras ou frequentar a escola, Pelo contrário, a falta do sinal wi fi e dos likes nos produz sintomas de abstinência. A vida digital foi “adicionada” ao nosso corpo, como um vírus, um elemento externo cujo código nos invade e nos governa. A cibernética, ciência criada no início do século XX pelos inventores dos computadores como conhecemos hoje trata justamente dessa simbiose comunicativa “humano” “máquina” e o próprio Von Neumann pensava a Inteligência Artificial como a passagem da “vida carbono” “para a vida silício”.
Freud foi contemporâneo disso e em seu “Mal-estar na cultura” coloca o aparelho psíquico como uma espécie de prótese, e fala da instância do “supereu” ou superego como uma interface entre o eu e o “fora” como um substituto autopunitivo da lei.
A palavra cibernética vem do grego kubernetes, que vai dar origem a palavra “governo”.
O governo dos vivos, a biopolítica discutida por Foucault é o governo das classificações, das palavras, das coisas, dos aparelhos, da expansão viral do poder pelos códigos. E os algoritmos que nos governam não são nada além de linguagens que nos escravizam,
Talvez as pandemias de HIV e Coronavírus sejam os esmagadores exemplos disso, ambas aconteceram no auge e no declínio do capitalismo liberal, e culminaram em um mundo onde o líder insano de uma potência nuclear tem mais medo de ter sua conta no Twitter bloqueada do que de um processo na justiça. O sistema americano pode suportar um presidente na prisão mas não sem Twitter.
Podemos pensar, então, a realidade psíquica como um imenso buraco no qual a atravessada a linguagem, entendida como uma realidade simbionte, que não é nada além de uma intrusão do real que vem a chacoalhar as bordas e reposicionar o simbólico, reordenando um espaço subjetivo
Assim, contra o horror distópico da produção monocromática de verdade, o próprio antídoto é a a utopia de construir mundos diferentes, aqui e agora. Sem pensamento crítico não há futuros possíveis.
Fabio Dal Molin, psicólogo, psicanalista, doutor em sociologia, professor da FURG e pós-doutorando do PPG em Psicanálise, Clínica e Cultura-UFRGS
@b.dalmolin @autodefesa2024