Ao longo da história, as populações afrodescendentes na América Latina e no Caribe vem trabalhando e lutam arduamente em prol do reconhecimento dos nossos direitos e pela justa reparação pelos crimes praticados durante os séculos de escravização que, ainda hoje, impactam as nossas realidades e subalternizam nossas experiências de vida no continente.
Um significativo processo de articulação contra-hegemônico, que se inicia concomitantemente com a colonização europeia - sustentada pelo tráfico humano de pessoas negras para o trabalho escravo nas Americas e Caribe- , liderado em grande medida por mulheres negras, vem desde o interminável seculo XV aos dias atuais, organizando-se e mobilizando-se para a construção e o reconhecimento de sociedades democráticas, equitativas, justas, multiculturais, livres do racismo, do sexismo e da exclusão social.
O patamar organizativo em que nos encontramos hoje é o resultado da adoção de uma abordagem interseccional para a análise das múltiplas opressões e das suas intersecções que nos auxiliam na compreensão, em uma perspetiva multidimensional, crítica, complexa e situada sobre as diversas formas como as redes de relações de poder foram e seguem sendo articuladas e constituídas. Diante disso, por meio do feminismo das pretas, construímos uma teoria política e prática transformadora, que busca desconstruir as hierarquias, as discriminações e os privilégios e privilegiados que seguem determinados os lugares e não lugares das pessoas negras em nossas sociedades.
Particularmente no Brasil, nas duas últimas décadas, foram inúmeros os avanços em torno da responsabilização por parte do estado brasileiro na busca pelo combate ao racismo e pela promoção da igualdade racial entre os diferentes grupos racializados em nosso país. Iniciativas como a criação da extinta Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, hoje Ministério da Igualdade Racial, o Estatuto da Igualdade Racial, as políticas de cotas raciais no ensino superior e também no serviço público, as conferências nacionais de igualdade racial, a PEC das Domésticas e o plano juventude negra viva entre tantas outras iniciativas de caráter nacional e internacional.
Entretanto, há uma importante lacuna a ser preenchida que é sobre o importante papel que as cidades e seus governos podem jogar na busca por superar o racismo, essa que é a mais longeva ferida aberta que a nossa sociedade carrega e que tem sido o elemento chave para a manutenção de uma vida indigna para milhões de brasileiros na sua maioria mulheres negras.
A necessidade de uma ação decisiva a nível local nunca foi tão evidente. É imperativo que as cidades adotem abordagens nítidas e estruturadas em todas as áreas da administração municipal para combater o racismo e o sexismo de forma eficaz. Está em jogo a garantia de que a democracia não é um mero verbete de dicionário assim como a coesão do tecido social. Esse trabalho demanda um esforço concentrado e articulado envolvendo diálogos interculturais e a colaboração entre a comunidade, o terceiro setor, a iniciativa privada e a criação de uma rede de governos locais em torno desta agenda.
Não é o meu objetivo aqui soar generalista, entretanto a experiência da cidade, o seu ordenamento, a distribuição dos territórios são reflexos das dinâmicas de poder existentes há séculos e que teimam em se perpetuar. Do transporte à moradia, passando pelos espaços públicos, as cidades sustentam e reproduzem as discriminações raciais e de gênero que moldaram a gestão pública em nosso país. E neste ponto a interseccionalidade assume um papel estratégico na busca por construirmos cidades mais democráticas e boas de se viver por meio da análise sobre quais barreiras físicas, sociais e econômicas as pessoas negras, com especial atenção para as mulheres negras, encontram em nossos cotidianos. Com essa análise é preciso apontar também cenários alternativos e saídas concretas que atendam a todos os grupos que vivem e constroem, com os seus trabalhos, as cidades.
Um olhar para as cidades a partir de uma perspectiva negra feminista ajuda a reconhecer quem está sendo marginalizado(a) e a compreender como o espaço urbano estrutura sistemas de opressão. A possibilidade de 'simplesmente estar' no espaço público nos diz muito sobre quem tem seu direito à cidade garantido e quem é considerado 'fora do lugar'. A negação do direito à cidade é o somatório de um conjunto de discriminações que precisam ser consideradas pelos gestores públicos. Defendo que a resiliência das mulheres negras deve inspirar a criação de políticas públicas baseadas no cuidado e nas experiências de solidariedade facilmente identificadas nos territórios periféricos de qualquer parte do país. Incluir as mulheres – de todas as classes, etnias, idades, habilidades e sexualidades – nos processos de tomada de decisão é primordial para que essas políticas aconteçam e a transformação, de fato, ocorra.
Os governos dos municípios devem atuar em acordo com as normas e legislações internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, atuando de forma efetiva e coordenada para mitigar as vulnerabilidades, ampliar os programas de combate à fome e à pobreza, fomentar o empreendedorismo e a economia solidária e garantir programas de saúde específicos para os grupos sociais marginalizados. É obrigação da gestão pública atuar na salvaguarda dos bens culturais do patrimônio afrobrasileiro assegurando a sua permanência nos seus territórios, seja construindo ou consolidando ações integradas de restauração e preservação material e imaterial.
Para que as políticas públicas possam ser eficazes e perenes é fundamental produzir e analisar dados qualitativos e quantitativos sobre a situação dos grupos atendidos pela gestão municipal. O objetivo dessa análise é aperfeiçoar o funcionamento e a execução dos seus programas e projetos. Por isso, uma política de monitoramento com controle social é um instrumento essencial para a mensuração das conquistas sociais e do cumprimento dos compromissos em torno do desenvolvimento e melhoria da vida da população. São as cidades o lugar onde se determina como organizamos nossas vidas e nossas comunidades e, definitivamente, nossa sociedade. Sobre isso as mulheres negras têm muito o que dizer.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum