CRÔNICA

Embaixadores – Por Luis Cosme Pinto

Nem sempre o preço ou o sabor da comida é o que conta num restaurante

Créditos: Arquivo pessoal
Escrito en OPINIÃO el

Fome fervorosa, noite alta, fim de mês. A porta ainda aberta desafia. Vale a pena se arriscar num restaurante deserto naquela escura terça-feira? Gastar ali o último caraminguá que restou do salário? Por que não jantar um pão com ovo em casa?

“O centro é perigoso” é o que Marina ouve todo dia e toda noite. Marina é professora de matemática de trabalhadores que não puderam estudar quando jovens.

Depois de quatro aulas seguidas, ela está parada ali, na fronteira da calçada com o carpete puído do pequeno salão. Então, o estômago vence o cérebro.

Num ambiente sombrio, a professora é recebida pelo mar azul da cidade de Beirute enquadrado ao lado do pôster de uma idosa de véu com uma inscrição: Haifa, 04/01/1971. Na TV, candidatas disputam um concurso de dança do ventre. Se há alguma dúvida, a placa de fórmica na parede de lambri esclarece de vez. COMIDA LIBANESA.

Quando Marina senta, um homem de óculos pesados, camiseta branca e cabeleira da mesma cor sai do banheiro com um jornal embaixo do sovaco. Ele ocupa a mesa ao lado, onde repousam meio sanduíche de cordeiro e um resto de refrigerante. Abre o jornal. Silêncio.

A professora caminha até uma geladeira com algumas cervejas. Abre, prova e então pergunta, disfarçando a impaciência dos famintos.

- Sabe do garçom? A gente pede direto na cozinha?

- Sou garçom e cozinheiro. Como a senhora não me chamou, esperei.

- É que eu não sabia...

- Agora já sabe. Me chamo Rafic.

Marina escolhe. Rafic puxa a bermuda pra cima, bota um avental que já foi azul e some na escuridão do corredor a arrastar as sandálias. Reaparece em 5 minutos.

Marina não gostou. Marina amou. O sabor, o preço e, principalmente, o jeitão do Rafic. Na semana seguinte, voltou com a namorada. Em seguida, convidou filhas, colegas da escola e o irmão que chegou de viagem. Ninguém havia comido kibes e kaftas como os de Rafic.

Ele prepara tudo na hora e com ingredientes desafiadores. Sanduíches de língua bovina, de fígado de galinha; bolinhos de grão de bico, kibes de batata, esfiha de zaatar. Serve picles e receitas veganas.

Em outra madrugada, Rafic se abre com a nova freguesa.  

- Trabalho de tarde, de noite e de madrugada porque tenho uma dívida enorme, que começou com o cartão de crédito. Deixei minha terra por causa das guerras. Perdi parentes e amigos. A Haifa, ali da foto, é a minha avó. Ela que me ensinou a cozinhar.

Um desbravador, de 65 anos, dividido entre a descoberta de um novo país e as memórias da terra de origem.

Uma educadora, de 50, encantada com o novo amigo, sua coragem, sua sabedoria.

Desde aquela primeira noite, a professora e o cozinheiro nunca mais se chamaram pelo nome.

“É Habib que a gente diz”, ele ensina. “Habib é gente querida, é amigo ou amiga, é alguém que a gente admira.”

Enquanto Marina pega a última garfada do mafrouk, Habib pergunta e ele mesmo responde.

- Sabe por que eu quero cozinhar até o meu último dia de vida? Porque esse é o jeito de eu mostrar a vocês o meu país.

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20 anos atrás, Marcelo comprou passagem só de ida num voo São Paulo-Tóquio. Fez quase tudo no país dos avós. Pedreiro, motorista, porteiro. Ganhou dinheiro, estudou e na tentativa de salvar o casamento voltou ao Brasil com a mulher paulistana e a filha. Deu tudo errado.

Veio a pandemia. Os pais, acima dos 80 anos, não podiam mais abrir o mercadinho, que também era a casa deles, na Barra Funda. Marcelo propôs a seu Toshiro. “Pai, deixa eu montar um restaurante?”

Enquanto Toshiro coçava a cabeça, dona Kasumi decidiu pelos 3. “Eu te ajudo na cozinha, filho. Toshiro fica no caixa. É bom de conta”.

A vizinhança, que esperava rodízio de sushis e sashimis, se enganou. Marcelo, de 51 anos, serve a refeição que conheceu em restaurantes populares do outro lado do mundo. Uma espécie de PF japonês. Comida frita e empanada em farinha grossa com “arroz-papa” e legumes. Nada de peixe cru. Atrás de um lençol, improvisado como cortina, Marcelo cozinha porco, frango, salmão, sardinha e receitas veganas. Oferece ainda yakissoba e lamen.

Tudo bom, bonito e barato.

Numa tarde de chuva, Marina entrou ali em busca de abrigo, encontrou uma história.

Tanto quanto a comida, ela se encantou com o ambiente. Uma organizadíssima bagunça. No comprido salão do restaurante, a herança do que foi o pequeno mercado com a moradia, tudo misturado. Ao lado das 12 mesas, o sabão em pó é vizinho de um violão sem cordas; máquina de costura junto do papel higiênico; balança de ponteiro na mesma prateleira das bananas.

E plantas. E um telefone amarelo de disco. E adubo. E farinha. E ratoeira. E fitas VHS. E livros. Religiosos, de autoajuda, de Paulo Coelho.

Marina nunca viu ninguém comprar nada além do almoço, mas sempre ouve elogios sobre as bugigangas.

Marcelo percebeu o interesse da freguesia. Num domingo acordou cedo, tirou todas as mesas e cadeiras, afastou as samambaias e as prateleiras entulhadas. Então, com bastante cuidado, entrou com uma van pelo salão e estacionou no fundo.

A inspiração veio de uma revista de celebridades, que revelou a mansão de um excêntrico arquiteto canadense. (a foto que ilustra a crônica é da Marina e o carro do Marcelo aparece ao fundo).

De novo, Marina levou sua turma e o sucesso se repetiu. Com a comida e com carnaval de badulaques. A sobrinha mais nova tirou foto dentro do carro.

A imigração que tanto deu e dá ao Brasil presenteou Marina com 2 habibs.

O desejo da professora é apresentar um ao outro, de preferência num terreno neutro, talvez um restaurante de comida mineira, que abriu perto do largo do Arouche e só fecha de manhã.

*Crônica baseada em fatos reais e com nomes modificados.

*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.