Em tempos que se reduz militância pela busca de visibilidade, pessoas como Flávio Jorge parecem um tanto estranhas. Flavinho, como era conhecido pelos amigos, partiu para o Orùn no dia 6 de junho, aos 70 anos de idade. Toda a sua trajetória no movimento negro foi no sentido de construir instrumentos de organização e incidência política para que a agenda antirracista ganhasse protagonismo no debate político.
Flavinho participa da organização do Grupo Negro da PUC/SP (Pontifícia Universidade Católica de S. Paulo) e também teve papel importante na construção do Congresso de Cultura Negra das Américas, liderado por Abdias do Nascimento (1914-2011) e realizado em 1982. Paralelamente, participa da organização do Partido dos Trabalhadores (PT) junto com militantes do Movimento Negro Unificado (MNU) e já no PT, tem participação destacada na construção dos eventos relativos ao Centenário da Abolição em 1988.
Conheci Flavinho na organização do I Encontro Nacional de Entidades Negras (Enen) realizado em 1991 em São Paulo. A organização deste encontro foi precedida da articulação de encontros regionais no final dos anos 1980 e a constituição dos fóruns de entidades negras nos estados. Na ocasião, eu estava envolvido na organização de uma entidade do movimento negro no estado de São Paulo, a Unegro (União de Negros pela Igualdade). Neste processo de organização do Enen, Flavinho junto com vários militantes que participaram do Grupo Negro da PUC, funda a Soweto - Organização Negra que, junto com a Unegro e os Agentes de Pastoral Negros, vai ter papel destacado na construção do Fórum de Entidades Negras de S. Paulo que funcionará como ponto organizativo do I Enen.
Muitas outras coisas Flavinho esteve envolvido, desde a construção de espaços institucionais nos governos petistas, como a Cone (Coordenadoria Especial do Negro) de S. Paulo na prefeitura de Luisa Erundina em S. Paulo, a Seppir (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) no governo Lula, o Congresso Continental dos Povos Negros nas Américas em 1995 no Memorial da América Latina, em S. Paulo (evento que o financiamento atrasou e ele simplesmente passou cheques pessoais seus para pagar a tradução simultânea sem ter certeza de que seria reembolsado) e a participação brasileira na Conferência de Durban em 2001 - estivemos juntos em Quito no ano de 2000 por ocasião do Foro Social das Américas pela Diversidade e Pluralidade, ocasião em que tive a honra de fazer a abertura com a conferência sobre racismo estrutural.
Em agosto de 1991, ele foi escolhido pelo movimento negro para ler uma carta de saudação dos negros e negras brasileiras ao lider sul-africano Nelson Mandela quando ele foi recepcionado na sede da prefeitura de São Paulo. Foi uma das poucas vezes que vi Flavinho gaguejar de emoção ao ler a carta num dos momentos mais emocionantes para a comunidade negra brasileira.
Tive muitas discussões e divergências com Flavinho que, com o tempo, foram se dirimindo, pois a maturidade nos faz enxergar com outras perspectivas mais amplas, às vezes tolhidas pelos impulsos da juventude. Nos encontramos pessoalmente no final do ano passado, em um evento do dia da consciência negra organizado pela Conen (Coordenadoria Nacional de Entidades Negras), entidade que ele fazia parte. Na ocasião ele dizia que era necessário resgatarmos as discussões políticas que fazíamos nos anos 1980 e 1990 que foram um tanto relegadas a segundo plano por conta desta disputa um tanto fraticida pela visibilidade e pelo rebaixamento do nivel dos debates políticos - vide a baixaria no Congresso Nacional nesta semana. Ele propunha um encontro com a galera que participou de todos aqueles momentos.
Depois nos falamos no inicio deste ano sobre a construção do programa antirracista da candidatura de Guilherme Boulos à prefeitura de São Paulo. Pouco afeito às tecnologias digitais, principalmente as redes sociais, ele sempre pedia que todos os documentos que enviassem a ele no whatsapp fossem mandados para o email dele.
É difícil encontrar uma ação politica do movimento negro de grande envergadura no campo progressista que não tenha as digitais de Flavinho. Ao mesmo tempo é provável que haja gente que hoje está no movimento negro não tenha ouvido falar ou conhecido Flavinho. Porque ele, ao contrário de uma tendência da sociedade das redes sociais de se batalhar pela visibilidade, Flavinho investia na organização e na qualificação do debate político. Muita coisa que se conquistou hoje na luta antirracista deve-se a pessoas como ele.
Valeu, irmão. Descanse em paz! Por aqui continuaremos a sua obra e você certamente no Orùn estará acompanhando. Um dia a gente se revê e põe o papo em dia.