No dia 23 de Maio de 2024 foi protocolado, na câmara de vereadores de Porto Alegre um pedido de impeachment do prefeito Sebastião Melo por negligência na gestão do sistema de proteção a enchentes e bombeamento de esgotos ao ignorar um alerta que tramita na prefeitura desde 2018 e também outros pareceres técnicos emitidos por cientistas desde a primeira grande inundação em setembro de 2023.
No dia 29 de maio a câmara rejeitou o pedido por 25 votos a 10. Mesmo quem não reside em Porto Alegre neste cataclísmico mês de maio deve perceber a raiva, a tristeza e a frustração que moradores e comerciantes da cidade devem estar sentindo, e dada a proporção da votação, boa parte dos vereadores receberam votos justamente desta população.
A grande questão a ser colocada aqui é: o prefeito e os vereadores eleitos da cidade estarão efetivamente representando seus eleitores e eleitoras nesta questão, e mesmo que Melo não sofra o impeachment e não seria de bom tom que as responsabilidades desta tragédia sejam apuradas e investigadas COM AMPLO DIREITO A DEFESA DO PREFEITO? A crise climática no Rio Grande do sul e sua materialidade brutal escancararam outra crise muito debatida na ciência política no Brasil dos últimos 30 anos: a crise na chamada democracia representativa.
Meu objetivo aqui é dar início a uma série de textos sobre o conceito de representação, e, como psicanalista e cientista social, produzir uma transversalidade deste conceito tanto na psicanálise como na sociologia.
A palavra representação em português possui sentidos mistos tanto na política quanto na linguística ou na psicanálise. Chamamos de representantes aqueles eleitos pelo sufrágio universal, que , em tese, estão ali no nosso lugar, como uma palavra representa a coisa que nomeia. Eu não preciso ter uma cadeira na sala para dizer para outra pessoa que comprei uma. Nesse caso, além de representar o objeto, a palavra o insere em um plano virtual de sentido que a permite transitar em diálogos, conversas e textos, e mesmo deslizar metaforicamente.
A cadeira pode referir-se a uma parte do corpo humano “dor nas cadeiras” ou a uma cátedra universitária “a cadeira de psicologia da educação”. Em alemão, a representação como conceito ou ideia se chama “vorstellung” e a representação como estar o lugar de algo se chama “reprazentanz”. No seu livro “As pulsões e seus destinos” Freud, ao defrontar-se com as vicissitudes dos impulsos do inconsciente que buscam a satisfação objetal e se convertem em sintomas, sonhos, atos falhos e compulsões, cunhou o termo “vorstellungraepresentanz”, que em português foi traduzido como “representantes representativos”.
Não é hora nem lugar para esmiuçar os complexos conceitos freudianos, mas podemos pensar que em nossa vida inconsciente haja um nascedouro de sentimentos básicos pulsantes de amor e ódio e que eles sejam tão viscerais que a vida em sociedade não permita sua satisfação plena, apenas parcial, pela via da representação. Todos nós, de alguma forma, temos essa fonte borbulhante de amor e ódio e que a sua manifestação seja frustrada de alguma forma pela nossa vida familiar, social ou pela educação. Essa energia não é perdida, ela fica latente, é utilizada de distintas formas, e pode ser escamoteada e canalizada, deixando sempre algum resto.
Em duas obras fundamentais escritas há pouco mais de um século, às portas do Holocausto e da segunda Guerra Mundial, a saber “A psicologia das massas a análise do Eu” e “O mal-estar na cultura” Freud tratou de nossos sentimentos viscerais e suas válvulas de escape, e das extremas dificuldades que enfrentamos para conviver em sociedade sem pagar um preço. Na primeira obra, Freud trata da formação de massas em torno de um líder como uma maneira de sublimar laços de amor e ódio, e que os participantes destes grupos tendem a identificar-se com esse líder a ponto de fusionar-se com ele, o que acarreta na aceitação incondicional de qualquer ideologia ou mesmo da realidade, como se fosse um hipnotismo. Da mesma maneira que um indivíduo hipnotizado pode comer uma cebola crua achando que é uma maçã, o membro de uma massa acredita que a terra pode ser plana, ou a cloroquina cura a COVID ou que o Brasil pode virar uma ditadura comunista.
Mas o que isso tem a ver com o tema da democracia e da representação?
E isso nos leva a viajar cem anos no passado, e, obviamente a teoria Freudiana, mas não na sua radicalidade, e sim na sua “representação” no campo da política, do capitalismo e da propaganda, através do sobrinho de sua esposa Martha Bernays: Edward Bernays, considerado o criador da profissão de relações públicas e da propaganda política como a conhecemos, e o homem responsável por fazer as mulheres fumarem. O pai do que chamamos hoje de fake news.
A história que contarei aqui, bem como a biografia de Edward Bernays e as consequências fundamentais de seu funesto trabalho para a história do século XX são contadas em detalhes no documentário “The century of the Self”, da BBC de Londres. O que nos interessa aqui é como Bernays usou o conceito de propaganda nazista e uma apropriação selvagem da psicanálise para parir o Brasil do mundo de 2020.
Edward Bernays recebeu da corporação do tabaco dos EUA a tarefa de tentar conquistar o publico feminino, ou seja, quebrar o tabu machista do hábito de fumar. Naquela época a psicanálise, especialmente na América, era restrita a poucos círculos médicos e acadêmicos, por ser uma prática considerada exótica em uma medicina ainda não científica e também pelo fato de Freud ser judeu. Bernays, então consultou um dos psicanalistas da primeira geração, também judeu austríaco que migrou para Nova Iorque Abrahan Arden Brill. Brill disse a Bernays que, segundo a teoria Freudiana da época, as mulheres, guardariam no inconsciente um sentimento infantil de inveja do pênis, e que uma maneira de usar isso seria associar o cigarro justamente àquilo que os homens têm e que as mulheres desejam ter. É claro que isso é uma interpretação um tanto literal e pouco precisa da formulação freudiana, mas na cabeça de Bernays caiu como uma chuva de dólares, afinal, além do pênis, o que os homens da época tinham e que as mulheres não? Dinheiro, autonomia, poder, direitos políticos e... liberdade de fumar...
Bernays, então, organizou um grande evento social e convidou a fina flor da sociedade novaiorquina, e toda a imprensa (lembrando que a mídia da época era apenas jornal e cinema) e contratou um grupo de debutantes e combinou que , no ápice da celebração todas elas acenderiam cigarros ao mesmo tempo diante das câmeras. O grande mago da publicidade espalhou o boato de que a festa seria invadida por um grupo de sufragistas. No dia seguinte, as manchetes de jornal estampavam as fotos das mulheres fumando com a manchete “Tochas da liberdade”.
Não é preciso dizer que, na época, um grupo de mulheres que lutavam por liberdade, igualdade e pelos seus direitos exibindo cigarros acesos provocou mais debate e polêmica do que se mostrassem os seios. Ainda que isso fosse uma estratégia pensada e arquitetada com o mainstream da indústria, a estratégia de Bernays despertou a libido transgressora das mulheres e a capitalizou. A partir daí Bernays criou um método que usaria para vender automóveis, roupas, eletrodomésticos, e... candidatos. No slogan “tochas da liberdade” foi criada uma representação para um objeto ausente, que guarda pouca relação com ele.
Liberdade, voto, transgressão, poder feminino... nada disso tem a ver com cigarro, um artefato fedorento, inútil, cancerígeno (ainda que na época não se soubesse disso). Bernays, então recebeu outra encomenda, que era tornar popular o taciturno presidente Edward Coolidge, e o fez convidando artistas famosos para visitar a Casa Branca. Assim, junto com a propaganda de produtos estava criada a propaganda eleitoral, e sem querer, Edward Bernays conseguiu operacionalizar a uma conjunção até então inusitada entre seu tio e outro famoso pensador europeu: Karl Marx.
Com a explosão tecnológica e econômica do pós-guerra, especialmente com relação as mídias, a propaganda passou a ditar os padrões de consumo e costumes do mundo ocidental, obedecendo as leis do desejo e do fetiche da mercadoria, ou seja, para que a mágica (fetiche significa também feitiço) funcione, o significante deve ser vazio, ou seja, a representação não deve guardar uma relação direta e consciente com a coisa representada.
É assim que vemos o cigarro Hollywood ser representado por esportes radicais, ou as crianças veem tigres comendo sucrilhos, ou a Coca Cola matar a sede, ainda que o excesso de açúcar e sal no sangue provoque justamente o contrário. A diretora Stela Renner produziu em 2012 uma importante denúncia através do documentário “Muito além do peso” que trata da escalada da obesidade infantil e da hiperexposição das crianças ao excesso de publicidade de alimentos prejudiciais a saúde.
No documentário Stela faz grupos focais com mães e crianças e mostra a quantidade de sal e gordura que refrigerantes e biscoitos contém, o que provoca medo e espanto. Sim, afinal, nada é mais angustiante do que o encontro do objeto real despido de suas representações fetichistas: uma lata de coca-cola contém seis saquinhos de açúcar e um pacote de bolacha recheada equivale a 8 pães franceses de 50 gramas. Em uma cena marcante do documentário uma menina olha para uma batata e diz “isso é um rabanete?” e olha para um pacote de Ruffles e diz “isso é batata!”. A mensagem que o documentário transmite é funesta e ao mesmo tempo uma leitura precisa da democracia brasileira no mundo de 2020: sob efeito das representações vazias, as mães trabalhadoras amorosas e dedicadas, na tarefa de alimentarem seus filhos, os estão matando.
Desta maneira Sebastião Melo disse em sua propaganda que tornaria Porto Alegre mais bonita e inovadora, e hoje somos um mar de lama e lixo, sem aeroporto ou rodoviária, Eduardo Leite disse que o fato de a agroindústria fazer sua própria fiscalização protegeria o meio-ambiente, que Bolsonaro combateria a corrupção e o crime organizado...Significantes vazios de significados, representações vazias discursos que só geram morte, destruição e doença.
Na próxima semana analisaremos esse conceito de representação vazia no funcionamento do congresso nacional, a partir do conceito de peemedibização e democracia iliberal.
Fabio Dal Molin
Psicólogo, psicanalista, doutor em sociologia, professor da FURG e pós-doutorando em psicanálise, clínica e cultura -UFRGS
@b.dalmolin @autodefesa2024