A greve das Universidades e Institutos Federais acabou!!!!!! Viva! Mas e daí? É com grande surpresa que recebo em meu Whatsapp perguntas de colegas e alunos perguntando: como está a greve? E agora?
Muitas pessoas me consideram um educador alternativo, que rompe com o ensino tradicional. Permitam´-me colocar um problema: a discussão que será proposta aqui é que para romper com alguma coisa, é preciso que ela exista, como no espetáculo The Wall do Pink Floyd onde um muro é construído ao longo do show para ser apoteoticamente derrubado. A pergunta aqui é: romper com o que, qual é o muro a ser derrubado? Que ensino tradicional estamos criticando aqui?
Eu lhes faço a seguinte pergunta: a Universidade possui um ensino tradicional operando, considerando tal ensino como uma proposta pedagógica articulada em um método sistematicamente aplicado e com resultados mensurados? Para tentar responder aquilo que não tem resposta, nem pergunta e muito menos solução eu recorro ao meu cacoete de pesquisador da ideologia no cinema e uso uma alegoria fílmica que, ao meu ver, opera alguns conceitos que dão conta de uma análise crítica bastante distópica do funcionamento da universidade e da Educação atual.
Trata-se do filme canadense “O Cubo” de 1997.
A narrativa trata de seis pessoas que são capturadas e aprisionadas em uma sala em forma de cubo com uma porta em cada face, sem saber como nem por que, e cada face do cubo leva a outro cubo de cor diferente, sendo que alguns cubos possuem armadilhas e outros não. Os personagens são um policial, uma médica sanitarista, um arquiteto, uma estudante de ensino médio, um ladrão especialista em fugas e um misterioso deficiente mental, supostamente portador da Síndrome de Asperger.
O grupo procura ao longo do filme executar duas tarefas: sair do cubo e fugir das armadilhas, tais tarefas são tangenciadas por questionamentos como: quem criou o cubo, porque ele foi criado, porque aquelas pessoas, como funciona, quais os critérios que determinam a presença ou não de armadilhas. A falta de água, comida, noção do tempo e respostas produz no grupo muita angústia e desespero, que levam a situações de stress, competição e conflitos internos e inversões paradoxais: o policial surge como o herói protetor que pensa que o cubo é produto de algum criminoso e acaba se convertendo em um fascista assassino, a médica sanitarista, que é quem questiona uma possível conspiração estatal de um regime autoritário do policial é assassinada por ele, o arquiteto (a visão niilista) se revela responsável pelo projeto de uma parte do cubo, porém sem saber o que é nem por que, a estudante é boa em matemática e resolve enigmas numéricos parciais e é abusada pelo policial, o especialista em fugas é o primeiro a morrer e aquele que é tratado pelo grupo como o monstro descartável é no fim uma calculadora humana que ajuda a resolver os enigmas mais complexos do cubo e é o único a sobreviver. Na cena final eele escapa do cubo mas o que o que aparece “lá fora” é apenas uma luz, o espectador termina o filme apenas sabendo algumas explicações a respeito do tamanho do cubo, como o mecanismo funciona e de mais um paradoxo: se todos permanecessem na posição inicial, todos sairiam facilmente e sem conflito, mesmo não sabendo para onde. As perguntas: quem fez, por que fez e porque as pessoas estão ali não são respondidas.
O filme ainda apresenta duas sequencias “Cubo 2 Hipercubo” onde a máquina sofre um upgrade e suas armadilhas tem a dimensão do tempo acrescentada e “Cubo zero”. Este terceiro filme é o mais interessante pois trabalha as perguntas fundamentais da série, o que Zizek aponta como a premissa de todo o cinema como arte perversa, que é dizer ao espectador o quê desejar: qual o sentido do cubo?quem o criou? Para que ele serve?
O Cubo é um filme muito didático no que diz respeito ao que pensadores como Foucault e Deleuze desenvolvem a respeito das instituições, do poder e da sociedade de controle entre “A verdade as formas jurídicas” “ vigiar e punir” “microfísica do poder” de Michel Foucault e “Sobre as sociedades de controle” de Deleuze. Em linhas gerais, o poder na sociedade se distribui em uma rede de dispositivos, diagramas, práticas ações, relações, discursos e enunciados. Organizações como o hospital, a escola, o exército, a igreja, a família são máquinas concretas reguladas por discursos explícitos e implícitos, com ou sem palavras, não possuindo um centro de comando, mas pontos de concentração. Em “Cubo zero” ( a terceira sequência ) pela primeira vez os mecanismos de controle do cubo aparecem concretamente na forma de um escritório regulador que produz no espectador a sensação de saber “quem coordena”, porém logo em seguida é mostrado um escritório que está acima deste, e outro, e outro consecutivamente em uma lógica fractal e infinita, ou seja, ao fim da história continuamos sem saber quem é a cabeça, na verdade, há infinitas cabeças, como diz a Hydra do filme do Capitão América “corte a cabeça, e duas nascerão”. Afinal, quem, concretamente controla nosso país, nossa cidade, nossas vidas, nossa Universidade?
Na nossa sociedade de controle, as instituições funcionam por duas lógicas transversalizadas, que Deleuze e Guattari chamam de máquinas mecânicas e máquinas maquínicas. As máquinas mecânicas dizem respeito as regras formais explícitas, organogramas, fluxogramas. protocolos e regras. As máquinas maquínicas operam nas não-discursividades, nas relações mesmas de poder onde todos somos carcereiros uns dos outros, no acontecimento em si
Podemos considerar o chamado “ensino tradicional” como uma máquina mecânica e abstrata e o cotidiano das aulas, dos tempos da cidade, do transporte, do desejo de alunos e professores, os sofrimentos, conflitos, disputas de poder uma máquina maquínica.
O que quero chamar a atenção aqui é que no caso do “ensino tradicional” a máquina mecânica, como diz o personagem do filme, opera em um plano virtual e sob a ilusão de um plano mestre.
Eu trago a alegoria do cubo para dizer que todos nós, alunos, professores e funcionários, quando ingressamos na máquina maquínica universitária, somos transversalizados pela máquina mecânica e obedecemos suas regras e protocolos praticamente sem questionar, mesmo que na verdade, como os personagens do filme, não tenhamos ideia de quem as criou, por que elas existem ou para que elas existem...
Vamos começar pelo caderno de chamada que nós professores recebemos, e nos perguntar: por que existe bimestre? Qual o fundamento para realizar uma avaliação após dois meses de aula? O que `Piaget, Vygotsky, Skinner, Freud, Rogers, Paulo Freire, dizem sobre isso? Por que o aluno precisa ter 75 por cento de presença em uma disciplina para não ser reprovado? Qual é a lógica disso? Qual o sentido da carga horária total de um curso?
E de uma disciplina? Qual o fundamento da inserção da variável tempo na aprendizagem? Ela meramente quantitativa? Quanto mais horas temos de aula mais aprendemos? E qual a diferença entre uma disciplina ter três créditos ou quatro créditos? Por que o curso de psicologia cumprido na sua sequencia logica plena tem cinco anos? A propósito do tempo em Vigiar e Punir podemos extrair o questionamento da passagem de uma lógica do suplício, para os trabalhos forçados até a virtualização do tempo da pena. Qual o critério utilizado para uma condenação de 20 anos ser diferente de 15 anos?
Essas são as perguntas que eu gostaria que fossem respondidas, e certamente elas não o são, a maioria de nós não sabe por que faz o que faz, por que aplica provas ou qual o objetivo delas, assim como todos entramos em sala de aula, cuja estrutura arquitetonica demonstra o que o Foucault chama de positividade do poder: ele não necessariamente oprime, mas nos conduz, nos obriga a fazer. O dispositivo de sala de aula é inexoravel, é uma máquina mais precisa e inexpugnável que o Cubo do filme, em quase nenhum desses meus 20 anos de docência (e eu já dei aula na academia de policia e até na prisão) eu cheguei na aula e meus alunos não estavam sentados em fila, olhando para frente, uns para as nucas dos outros e em direção ao quadro e a mesa onde o professor está.
Até agora no ensino virtual da pandemia nas aulas síncronas e nos famigerados AVAS, ali onde deveria haver a lógica horizontal das redes é sempre o professor quem fala primeiro, propõe a ação, expõe seu programa, seu argumento e seu cronograma e isso acontece sem nenhum questionamento ou interação e assim será até o fim do semestre, ainda que as intermitências da internet, os horários , da desmotivação dos alunos, das câmeras desligadas. das pequenas sabotagens, da total ausência de autonomia e tesão. Etc.etc etc etc etc
Nessa máquina onde o professor só dá respostas para suas próprias pergunas revela que toda essa máquina disciplinar ordenada é uma grande ficção, algo que nunca se realiza, ainda que no chamado “sistema” no quadro de sequência lógica, alunos e professores todos cumpram a risca seus cronogramas e todos ficam aliviados e satisfeitos em sairmos vivos após toda essa carnificina, mesmo que não saibamos para onde vamos ou por que.
Quero dizer para vocês que forças destruidoras muito poderosas seguem agindo na frágil democracia brasileira, e cito aqui a frase mais dita na famosa série Game of Thrones com todo o seu sentido “o inverno está chegando” e todos vocês sabem intuitivamente que enfrentamos um inimigo implacável, organizado, coordenado e cruel que se alimenta justamente da principal sequela desse modelo: a lógica da transmissão. É da lógica da transmissão que brotam as fake news, que nada mais são que o conhecimento descarregado de redes que não são interativas, e sim interpassivas
Eu temo pensar que estamos indefesos, com nossos dias contados e com poucas possibilidades de resistência tendo em vista o que foi dito aqui anteriormente, nosso exército não foi preparado para guerra, está desunido, desmobilizado e não possui um comandante. Nós, os de “humanas” somos os alvos preferidos dos regimes autoritários, porém nossa importância, ou desimportância, no valor mesmo de uso da mercadoria, é quase ínfima, nossa perseguição é meramente fetichista e ideológica, e ela vem acontecendo pouco a pouco estamos perdendo o já pouco valorizado status intelectual (que já é bem empobrecido em nosso meio). Somos chamados agora de doutrinadores comunistas e marxistas, ou mesmo de idolatrar um demônio chamado Paulo Freire, ainda que tais acusações sejam infundadas. Paulo Freire é um mero significado sem significante na educação brasileira
Contudo, mesmo que sejamos insignificantes, como objeto de fetiche ideolológico, estamos na mira do fascismo, do neoliberalismo e das massas organizadas em torno de um líder. Na verdade, tal gozo em torno do combate ao comunismo repousa pelo valor estratégico de outras áreas, essas sim valiosas, onde não há absolutamente qualquer forma de crítica a ideologia, onde a pedagogia opera dentro dos ideais fascistas: as ciências exatas.
Na minha análise, o que está acontecendo agora em nosso país tem muitos fatores, entre eles a descoberta das últimas jazidas de petróleo (não por acaso o eixo do mal está nos grandes produtores do ouro negro do mundo). Os grandes investidores do mundo econômico sabem que o petróleo está com seus dias contados, logo, o usarão para obter o máximo de seus lucros até a última gota, enquanto já detém as patentes das energias alternativas e renováveis. O sintoma disso é a emergência climática que destruiu o Rio Grande do Sul e está queimando a Amazônia o Pantanal e boa parte dos EUA neste início de verão.
Atualmente, as universidades públicas ocupam uma parcela ínfima no ensino superior , porém as pesquisas desenvolvidas na área de tecnologia somos a esmagadora maioria. Ao privatizarmos ou acabamos com as universidades federais, seremos totalmente dependentes das tecnologias estrangeiras vendidas a peso de ouro ou em troca de matéria-prima... Mas a pergunta é urgente: alguém aí que frequenta a universidade sabe disso, de que a defesa de nosso espaço e nosso lugar é a defesa de todo um país? Muito pouco. Como eu já disse, tudo o que sabemos é que somos um lugar de assistir aula ou não, fazer prova, sentar em frente a um quadro verde.
O que sou eu na formação de um sujeito?
A resposta é que eu tento construir junto com meus alunos e alunas algum sentido para o ato educativo, para que essa instituição tão cara a todos nós, a única no mundo totalmente pública e gratuita, na qual vivemos os últimos dias em que teremos liberdade de expressão e criação e autonomia para trabalhar, liberdade essa que é desperdiçada por alunos e professores perdidos nas engrenagens sem sentido da máquina mecânica.
Freud inventou a psicanálise para se opor ao hipnotismo, por fazer uma crítica e este método como excessivamente sugestivo e alienante. E hoje vivemos nossa vida em um transe hipnótico, e talvez só despertemos dele com a fumaça do incêndio. Enfim, de que maneiras podemos construir saber, produzir saber, bons encontros e afetos, que não matem nossa capacidade de desejar? Como poderemos lutar se não sabemos pelo que estamos lutando? Como podemos nos apropriar de nossas próprias vidas?
O que constitui então um ato educativo criativo? Talvez o mesmo do ato analítico, afinal Freud considera tanto educar quanto analisar tarefas impossíveis. Na máquina mecânica a educação é vista como possível, bem como a cura pela normatização. Aqui eu concordo com Freud: educar é impossível, porém a impossibilidade pode nos impulsionar a um universo de múltiplas utopias.
Fabio Dal Molin, psicólogo, psicanalista, doutor em sociologia, professor da FURG e pós-doutorando do PPG em Psicanálise, Clínica e Cultura-UFRGS
@b.dalmolin @autodefesa2024