OPINIÃO

O PL do estupro e a guerra petrossexoracial: por uma ética marcial de si ou uma esquerda que se garanta no soco

A luta da esquerda hoje é a luta pelo futuro, mesmo que esse futuro não vá acontecer em lugar nenhum, apenas como utopia e acima de tudo ela precisa ser uma luta

O então deputado federal Jair Bolsonaro em 2003 deferindo falas misóginas à Maria do Rosário.Créditos: Fábio Dal Molin//Arquivo Pessoal
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Em 19 de novembro de 2020, João Alberto Silveira Freitas, homem negro, pai de família, morador do bairro Passo D'areia, foi brutalmente espancado por seguranças e teve o corpo imobilizado por um deles, com o joelho em seu peito, vindo a falecer por asfixia no estacionamento do supermercado Carrefour, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. No dia seguinte, data comemorativa da Consciência Negra no Brasil, a Rede Carrefour foi alvo de protestos no Brasil inteiro e o ato teve repercussão mundial. Até a data de hoje, 18 de junho de 2024 e ainda que o ato tenha sido filmado e registrado em plataformas de streaming, seus assassinos ainda não foram julgados.

Seis meses antes, na cidade de Minneapolis, Minessota, Estados Unidos, acusado de tentar trocar uma nota falsa de 20 dólares, George Floyd, homem negro da mesma estatura que Freitas, foi imobilizado por um policial com o joelho em seu pescoço por 8 minutos, também vindo a falecer. O ato teve repercussão mundial.

No dia 3 de março de 1991, em Los Angeles, Rodney King, um jovem trabalhador afroamericano de 26 anos, foi interceptado por três viaturas e um helicóptero da polícia que o perseguiam por excesso de velocidade. Ao se recusar a sair do veículo, foi ameaçado com uma arma de fogo apontada para seu rosto. Alguns segundos depois, ele obedeceu e se deitou no chão; sofreu muitos golpes com uma arma de eletrochoque. O ato foi filmado em uma câmera de VHS por um morador do bairro, os agressores foram inocentados por legítima defesa e o ato desencadeou uma série de revoltas nos Estados Unidos.

No ano de 2003, o então deputado federal Jair Bolsonaro, nos corredores do Congresso Nacional, tem uma acalorada discussão com sua colega parlamentar Maria do Rosário, em algum momento ele profere, entre , outras grosserias, a frase “eu não lhe estupro por que você não merece”. Bolsonaro não sofreu qualquer sanção por tal dito e se elegeu presidente do Brasil em 2018, e perdeu a reeleição para Lula em 2022 por 1.8 milhão de votos.

Em 2024 um grupo de deputados do PL, atual partido de Bolsonaro, entre eles seu filho Eduardo e Carla Zambelli, que um dia antes do pleito de 2022 perseguiu Luan Araujo, homem negro com uma arma de fogo pelo centro de São Paulo, apresentou um projeto de lei no qual o aborto, após 22 semanas de gestação, será punido como crime de estupro, o autor é um pastor chamado Sóstenes Cavalcante, homem branco de 49 anos e pastor da Assembléia de Deus.

A esfera pública nacional, em especial a esquerda governista, manifestou-se timidamente contra o PL, limitando-se a comentar que a gestante que cometeria o suposto crime teria uma punição maior do que o estuprador. Tanto a presidenta do PT Gleisi Hoffman quanto o presidente Lula afirmaram ser pessoalmente contra o aborto. E pior: o PT liberou sua base aliada no congresso para votar na tramitação do projeto em regime de urgência.

E é sobre isso que pretendo escrever aqui a partir dos atos horrendos descritos acima. Quase ninguém no chamado “campo progressista” ou “esquerda” teve coragem para enfrentar  a brutal violência cometida pela casta rica, branca, masculina e privilegiada dos políticos  que propuseram o PL 1904, que, como qualquer tentativa de proibir ou criminalizar o aborto, representa um ato de extrema violência contra o corpo não só de mulheres, mas quaisquer pessoas cujos corpos engravidem. Os deputados e deputadas proponentes da PL são todos defensores das armas de fogo e da legítima defesa para que a classe média branca possa defender seu patrimônio, mas pretendem usar o poder colonial e penal do Estado brasileiro para tornar os corpos já violados incapazes de se defender, vidas matáveis, indefensáveis. O enfrentamento da esquerda brasileira contra a extrema direita procura evitar conflitos e reduzir riscos com um resultado pífio e até contrário. Recomendo muito o episódio do programa “Calma, urgente”: “Mimando a direita”.

O Brasil, mesmo em seu campo progressista, possui uma posição reacionária e retrógrada com relação ao crime em geral e ao estupro em particular. As discussões geralmente tratam de prisão e pena. É um dogma ser contra a  pena de morte mas torcemos para sentenças mais duras ppara nossos inimigos políticos  e para os estupradores serem violados e mortos na prisão por outros assassinos estupradores , sem pensar que só quem vai para cadeia no Brasil são mulheres, pobres e pretos.

Beto Freitas, Rodney King, George Floyd e Maria do Rosário enfrentaram agressores cujas posições na estrutura da sociedade racista, machista e misógina transformaram seus esforços de defesa em exposição ao risco, nos três primeiros de violência física e na parlamentar gaúcha em violência moral por difamação, destruição da reputação e fluxo de fake news.

O que resta aos corpos aos quais o Estado estruturalmente criado elimina o direito a legítima defesa?

É esta a problemática do livro “Autodefesa: uma filosofia da violência” da filósofa francesa Elsa Dorlin. A autora inicia seu livro emulando o suplício de Damien, do livro “Vigiar e Punir” de Michel Foucault, narrando uma outra e singular forma punitiva da idade média, o suplício da grade de ferro, onde o corpo do condenado é colocado em uma condição de, quanto mais tentar reagir, maior é a dor. Dorlin compara o suplício da grade de ferro ao espancamento de Rodney King, quando os advogados da polícia alegaram legítima defesa. Cada gesto defensivo de King era interpretado como uma ação de agressão, como George Floyd foi sufocado por protocolos para segurança do policial, Beto Freitas foi acusado de não ser réu primário e de ter iniciado a agressão, e Maria do Rosário é exposta nas redes como defensora de bandidos, estupradores e pedófilos, e membros de seu próprio partido não confia em sua candidatura a prefeita de Porto Alegre.

Elsa Dorlin faz uma genealogia de diferentes grupos sociais marcados pela extrema violência colonial que não possuem nada para defender a não ser o próprio corpo ou a própria existência: as mulheres que pegaram em armas na Revolução Francesa, os escravizados africanos e caribenhos e chineses insurrectos da guerra dos boxers que desenvolveram artes marciais carregadas de misticismo e espiritualidade, as sufragistas que aprenderam jiu-jitsu, os panteras negras que reivindicavam armas de fogo em pleno apartheid ameriano, as brigadas gays de São Francisco, os encurralados do de Varsóvia que optaram por morrer lutando...

Diz Dorlin:

“Técnicas marciais desviantes, transgressoras e informais: há toda uma genealogia alternativa, subterrânea, de práticas defensivas de si. Esta genealogia não vem de uma história jurídico-política de legítima defesa; ela traça seu inverso agonístico. Desse ponto de vista, a história das culturas marciais “sem armas nas mãos”, própria de escravizados possibilita, a apreensão de modos de subjetivação que representam resistências que não se encaixam numa temporalidade clássica de enfrentamento, no sentido em que este, por assim dizer, é diferido.

Para além da ética marcial de si e das técnicas de defesa pessoal, a autodefesa está relacionada a genealogia do conjunto de dispositivos sociais, jurídicos, econômicos e cientificos da exclusão e da manutenção dos privilégios.”

No Brasil ainda vivemos tempos coloniais, e o sistema democrático apenas arranhou o verniz de uma estrutura brutal e violenta que não é mais da monarquia ou da velha república, mas deslocou seu eixo para a apropriação da democracia por igrejas neopentecostais, milícias e latifundiários herdeiros das capitanias hereditárias que agora usam do poder constitucional eleito para apertar a máquina de aparelhos econômicos, jurídicos, morais  e também de degradação ambiental e climática para dar a solução final do genocídio de todes que não se enquadrem no modelo de normatização que Paul Preciado  em seu livro fundamental “Dysphoria Mundi” chama de “petrossexoracial”.

 O breve alívio causado pelo retorno de Lula na eleição majoritária não se mostrou nem de perto suficiente para  produzir algum enfrentamento a essa violência extrema, pois ela é estrutural, ou seja, é como um edifício em ruínas no qual apenas a mobília de uma sala foi trocada, precisamos reconstruir os alicerces ou construir um prédio novo, e para isso há que lançar mão de martelos, foices, marretas, dinamite. Como coloquei em meu texto anterior, o campo da democracia liberal e da coalizão foi completamente capturado por aquilo que Marcos Nobre chama de “direita sem medo” e a esquerda hegemônica governamental parece presa em uma estratégia solipsista igual a um jogador de War que acha que seu adversário tem a tarefa de conquistar alguns territórios quando na verdade sua carta é de eliminar seu inimigo em sua totalidade. 

Eu não sei se somos capazes de vencer essa guerra pela força, ou se uma revolução ou uma guerra civili seriam a solução para nossos problemas, mas talvez seja tarefa da esquerda dar alguma esperança, algum sinal de que alguém luta por nós, ou então de que vale ter Lula presidente se quem governa é Arthur Lira, se o PT morre de medo de um segundo impeachment ou de críticas da TV Globo? O filósofo Vladimir Safatle faz a leitura correta da situação ao dizer que no Brasil “a esquerda morreu”, e que é a extrema direita que resguarda o espírito insurrecional ao queimar automóveis e invadir e depredar os poderes instituídos. 

O analisador produzido pelo PL 1904 nos mostra que estamos em menor número, encurralados e que esses brutos animais selvagens colocaram em marcha um plano de extermínio predatório. Eles não ligam para o genocídio, a catástrofe climática e para os filhos resultantes do estupro.

A luta da esquerda hoje é a luta pelo futuro, mesmo que esse futuro não vá acontecer em lugar nenhum, apenas como UTOPIA e acima de tudo ela precisa ser uma LUTA.

 E eu, aqui de um estado e uma cidade onde o fim do mundo efetivamente começou evoco novamente a imagem de Maria do Rosário, nossa candidata a prefeita, não por acaso uma mulher, ESSA mulher, nossa última barreira contra a total destruição. Desde a difusão daquele vídeo que todes veem Rosário como uma vítima de agressão. Mas quem sabe não podemos resolver o quebra -cabeça virando uma de suas peças de cabeça para baixo e enxergamos uma mulher encarando a Besta masculina petrossexoracial de frente, olhando no olho, inclusive o ameaçando de dar umas bofetadas? 

Recomendo muito a leitura e do debate do livro de Elsa Dorlin. Durante a pandemia ofereci dois módulos de leitura dirigida do livro e neste semestre coordeno, como atividade de extensão juntamente com estudantes de psicologia da UFRGS o projeto “Corpo, ética, autodefesa: uma filosofia da resistência” onde agregamos ao texto atividades de corpo ética marcial.

Fábio Dal Molin, psicólogo, psicanalista, professor da FURG, pós doutorando em psicanálise, clínica e cultura pela UFRGS, professor de autodefesa e coordenador dos projetos “Coletivo Rosa dos Ventos” e “Autodefesa, uma filosofia da resistência”.

@b.dalmolin, @autodefesa2024