No domingo (9) os franceses receberam com grande surpresa o anúncio do presidente Emmanuel Macron, que dissolveu a Assembleia Nacional Francesa e convocou novas eleições logo após o resultado da eleição ao Parlamento Europeu. A pergunta que ecoou pelo país no momento seguinte ao espanto foi: qual a estratégia do presidente diante de um ato drástico, que pode, inclusive, jogar o governo no colo da extrema direita francesa, vencedora das eleições europeias?
Vale pontuar que o sistema político francês – semipresidencialista, ou seja, um sistema no qual a presidência partilha o governo com o parlamento, na figura do primeiro-ministro – prevê a possibilidade de o presidente dissolver a Assembleia Nacional e chamar novas eleições. Dessa forma, o que o presidente francês fez na noite de domingo é perfeitamente legal e condizente às normas democráticas do país. A legalidade, no entanto, não torna o ato menos radical, na medida em que coloca o cenário político num campo bastante conturbado, e com riscos reais de ver a extrema direita chegar ao governo do país pela primeira vez.
É importante, contudo, observar o contexto no qual o presidente governa o país desde 2022, quando foi reeleito presidente, vencendo a líder do partido de extrema direita, Marine Le Pen. Apesar de vitorioso, Emmanuel Macron não carregava uma aprovação expressiva de seu primeiro mandato: a disputa pelo segundo turno havia sido acirrada entre o candidato do partido de esquerda La France Insoumise, Jean Luc Melanchon (21,95% no primeiro turno), e Marine Le Pen (23,15%). Assim, parte considerável dos eleitores de esquerda que escolheram Macron no segundo turno, o fizeram como forma de barrar a vitória da extrema direita.
As eleições para o parlamento, que tiveram lugar alguns meses depois, reforçaram esse cenário: Macron não conseguiu eleger um número de deputados que lhe desse maioria confortável, além de ter havido uma expressiva alta de deputados de extrema direita (de 8 eleitos em 2017, o partido de Marine Le Pen elegeu 89 deputados em 2022) e uma frente de esquerda para tentar barrar a eleição de um primeiro-ministro do campo macronista. Nessa conjuntura, os principais atos de seu segundo mandato de governo vêm sendo marcados por reformas impopulares, a utilização massiva de um mecanismo constitucional (o artigo 49,3) para aprovar pautas do governo a despeito do parlamento – como no caso da reforma da previdência – o que tem sido, também, motivo de intensa insatisfação popular.
Diante dessa situação – na qual, nas palavras do próprio presidente, o governo vem atuando de maneira precária – a dissolução da Assembleia Nacional foi tida por Emmanuel Macron como uma resposta à insatisfação popular expressa no resultado das eleições europeias, que não poderia ser ignorada pelo presidente. Ainda segundo ele, o povo francês demonstrou de forma contundente o seu descontentamento, não havendo outra opção que o chamamento de novas eleições, para clarificar os termos do debate político e devolver ao povo francês a possibilidade de refletir sobre o que deseja para o país.
O discurso de Emmanuel Macron faria sentido se não fosse difícil conceber que ele faria uma manobra tão arriscada como essa para, no momento seguinte, perder a maioria parlamentar, ainda que precária, seja para a extrema direita, seja para a esquerda. Por isso analistas apontavam, na segunda-feira (10), que Emmanuel Macron apostava principalmente na divisão da esquerda, já implodida sua última aliança a partir de temas sensíveis como as guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza, o que deixaria parte dos social-democratas em condição de se aliar ao seu campo para barrar a extrema direita. Assim, a jogada arriscada visava recompor o parlamento buscando, dessa vez, eleger um número maior de deputados que compusesse maioria com o presidente.
A resposta da esquerda, no entanto, foi rápida e um tanto surpreendente: já na segunda-feira (10), os diferentes partidos da esquerda francesa afirmaram uma aliança que tem como principal objetivo a resistência ao fascismo, na figura da expressiva votação da extrema direita nas eleições europeias. A aliança recebeu o nome de Front Populaire, reeditando uma aliança histórica feita pela esquerda francesa nas eleições legislativas de 1936 como resposta à crescente onda fascista.
Já para a direita, principal aliada potencial do macronismo, a dissolução do parlamento expôs a fragilidade desse campo que vem encolhendo nos últimos anos, tendo tido uma derrota expressiva nas últimas eleições presidenciais. Diante da aliança anunciada pela esquerda, Eric Cioti, presidente do principal partido de direita francês, Les Républicains, anunciou uma aliança com o Rassemblement Nacional, de Marine Le Pen. Esse anúncio foi tido por importantes figuras do partido como traição, e hoje, 12, Cioti foi excluído do partido, implodindo a possibilidade de aliança e a própria direita francesa.
Nessa conjuntura, Emmanuel Macron organiza sua campanha para as eleições do parlamento se apresentando como a única alternativa contra o que ele chama de “extremismos”, ao equiparar a aliança de esquerda à extrema direita. Ainda que no discurso o presidente aponte a importância de ouvir a insatisfação do povo francês, essa equivalência entre a plataforma xenófoba da extrema direita, que elege os imigrantes como inimigos responsáveis pelos males do país, e a frente organizada pelos partidos de esquerda, banaliza o debate e as insatisfações legítimas do povo francês. Não é muito diferente do que acontece no Brasil quando há a tentativa de equivalência entre extrema direita e esquerda. Em diferentes cantos do mundo, o “centro” vem sendo reivindicado como única saída, não é de hoje. Já os problemas reais das pessoas, em grande parte devido à adesão maciça desse mesmo centro às políticas neoliberais, se avolumam sem horizonte de melhora.
A França, que vem sendo um farol democrático e republicano para um mundo à deriva, que pende cada vez mais para o extremismo, vive o risco real da ascensão da extrema direita ao governo. Vemos a extrema direita francesa apostar no desencanto do eleitorado e surfar no populismo, como, ademais, ocorre em diversos outros países atualmente. Há que se observar, no entanto, o contingente de abstenção, nulos e brancos que é crescente a cada eleição, evidenciando o descrédito da democracia representativa nos moldes em que se apresenta, sem oferecer saídas concretas para as aflições urgentes impostas pelo neoliberalismo, pelo contexto bélico e as consequências dramáticas das mudanças climáticas. A ver se a frente de esquerda, que além de seus próprios dilemas internos, vive sempre um impasse entre o enfrentamento ao neoliberalismo e a manutenção de uma forma de representação de interesses caduca, terá força para buscar esses votos e evitar o mal maior.
*Kellen Alves Gutierres é doutora em ciências sociais pela Unicamp e professora na Université Jean Moulin Lyon 3