OPINIÃO

Melo, o antirrei e a farsa da democracia na era digital

Como uma população que sofre cotidianamente o drama de uma cidade sem coleta de lixo e com um programa de assistência social baseado em albergues terceirizados sem PPCI e alvará vai às urnas votar contra o comunismo, Coréia do Norte e mamadeira de piroca?

Parque da harmonia alagado após corte de 400 árvores.Créditos: Fabio Dal Molin/Arquivo Pessoal
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“A democracia é um fenômeno histórico. Desenvolveu-se em condições específicas. Sobreviveu em alguns países, à medida que essas condições evoluíam, mas será capaz de sobreviver em quaisquer circunstâncias?” (Przeworski, 2019, p.35)

No dia 24 de maio de 2024 Porto Alegre virou motivo de chacota e estarrecimento do Brasil inteiro. Em 19 de maio, após um recuo das águas do Guaíba, a prefeitura tomou a estapafúrdia e impensada decisão de simplesmente arrancar uma das comportas de contenção para escoar a área alagada do centro da capital gaúcha, mesmo que a previsão do tempo indicasse que nos próximos dias cairiam elevados volumes de chuva em todo o Rio Grande do Sul.

Pois no dia 23 de abril foram registrados 117 milímetros de precipitação e o nível do rio voltou a subir, e a ausência da comporta provocou um novo alagamento justamente na hora em que os comerciantes e o DMLU davam início a limpeza do centro. Além de arrancar a comporta, o prefeito sugeriu aos moradores dos bairros Menino Deus e Cidade Baixa que colocassem os entulhos de suas casas na rua para que a prefeitura os coletasse, e isso não aconteceu. Enquanto isso, diante da nova enxurrada, a empresa de energia elétrica privatizada Equatorial desligou as bombas de escoamento de esgoto, e o lixo depositado nas calçadas entupiu bueiros e bocas de lobo. Os moradores e moradoras dos bairros atingidos que limpavam e secavam suas residências tiveram que fugir em pânico com água na cintura e o prefeito de Porto Alegre desapareceu por 12 horas.

A estupidez atingiu Porto Alegre com uma onda mil vezes pior que a das enchentes.

Caros amigues leitores e leitoras da Fórum, o governador Eduardo Leite, sem querer, produziu a análise mais lúcida da nossa realidade: “O Rio Grande do Sul será um case de enfrentamento de catástrofes. Exato. Preciso. É um case de como gestores neoliberais que hackearam a democracia com polpudos apoios da mídia corporativa, do agronegócio e da especulação imobiliária veem seus discursos de governança, gestão e eficiência desmoronar quando são colocados em uma situação onde tudo isso é exigido. Parafraseando Marx, eu diria “as gestões neoliberais se repetem primeiro como farsa, depois como tragédia”.

O pleito que elegeu Sebastião Melo aconteceu em plena pandemia da Covid-19 e no auge do horror do governo Jair Bolsonaro, cuja crueldade genocida e incompetência eram protegidas por um verdadeiro escudo de seu exército digital que disparava fake news. Naquela época a principal concorrente foi Manuela d’Ávila, que havia sido candidata a vice-presidência na chapa de Fernando Haddad e é marcada como uma das maiores vitimas de violência política da atualidade, a ponto de, após a eleição para a prefeitura ter 005 qualquer pretensão a cargos públicos. Pois eu lembro bem de, naquela eleição, ver perto da minha casa um caminhão de som da campanha de Melo vociferando ataques e absurdos, como “se Manuela ganhar vamos virar Venezuela e comer carne de cachorro”, “Porto Alegre será invadida pelo comunismo”. Pois Manu, uma mulher qualificada, educada e com grandes projetos para a cidade foi vencida por um político obscuro e fisiológico de uma coalizão neoliberal entre partidos de direita e movimentos como MBL, Brasil Paralelo e Armas Pela Vida, que governa Porto Alegre desde 2005 apoiados pelo cartel das empresas de ônibus, das incorporadoras imobiliárias e das igrejas neopentecostais, Nenhuma dessas gestões apresentou sequer um projeto para a cidade que não fosse sucateamento e privatização de serviços públicos e destruição das leis ambientais e regulamentação da atividade econômica predatória.

Da mesma forma que na eleição presidencial em 2018 a ciência política se deparou com um enigma difícil de responder: como a democracia brasileira foi capaz de conduzir a cargos de enorme responsabilidade candidatos tão ignorantes, grosseiros, mal preparados, autoritários, negacionistas e sem nenhum currículo ou projeto para o país? Como Sebastião Melo, signatário de gestões anteriores que desmantelaram o sistema de proteção contra enchentes de Porto Alegre ganhou mais votos do que Manuela, que apresentou em sua propaganda política uma proposta específica para reformar os sistemas de bombas e diques dos bairros Sarandi e Humaitá, em uma demonstração de visão de longo alcance, porque foram justamente as regiões mais afetadas pela catástrofe de 2024.

Como uma população que sofre cotidianamente o drama de uma cidade sem coleta de lixo e com um programa de assistência social baseado em albergues terceirizados sem PPCI e alvará vai às urnas votar contra o comunismo, Coréia do Norte e mamadeira de piroca? Pois os genocídios protagonizados por Bolsonaro e Melo fizeram os cientistas sociais (e eu me incluo entre eles) arregaçarem as mangas e buscarem as chaves de análise que explicam esse verdadeiro colapso da democracia liberal. E uma dessas chaves está diante de nossos olhos, bem perto, a um clique de distância: o mundo digital. Até o início dos anos 2000 o mundo digital, a internet e os computadores eram parte integrante de nossas vidas, hoje essa relação foi invertida sistemicamente, e são nossas vidas, nossa arte, nossa criatividade, nossa ação política que estão dentro do mundo digital, e passaram não mais a seguir as regras orgânicas da sociedade, mas o governo algorítmico e cibernético das redes sociais. É isso que a antropóloga Letícia Cesarino apresenta em seu livro “O mundo virado do avesso: verdade e política na era digital”. Tendo a cibernética e a antropologia estrutural como lastro, Letícia analisa os impasses da democracia digital a partir de alguns conceitos que considero muito importantes para entender a ascensão de imbecis, fascistas, influencers, pastores e militares obscuros e seu sucesso eleitoral. Pretendo discutir aqui três deles: viscosidade, cismogênese e a teoria do antirrei.

Em primeiro lugar é importante colocar que, ao contrário do que se pensa, a ação política e epistemológica digital não acontece na internet, e sim nas redes sociais. A internet é uma rede de computadores conectados ao redor do mundo e as redes sociais são plataformas privadas gerenciadas por algoritmos onde os seres humanos são agentes, e não ambientes. A ação política é guiada e mediada pelos fluxos de programação, que são capazes de regular a velocidade e a exposição de quaisquer discursos, ideias, textos ou notícias. Letícia Cesarino usa a metáfora da “viscosidade” para explicar essa regulação algorítmica, e que a digitalização e plataformização reduzem essa viscosidade e bagunçam grandezas como velocidade e tamanho do sistema. Imaginemos uma célula e suas organelas, cada qual com sua posição e função, e o citoplasma possui um certo grau de viscosidade que evita que a mitocôndria e o complexo de Golgi não se misturem ou colidam, ou mesmo rompam com a membrana celular

No caso do sistema das redes sociais, a baixa viscosidade é capaz de, dependendo do engajamento ou do poder econômico, fazer com que a ciência seja colocada em um plano inferior do conhecimento e teorias estapafúrdias, que ocupavam posições periféricas e exóticas, façam com que uma grande parcela da população deixe de vacinar seus filhos ou acreditem que a Manuela d’Ávila obrigaria os portoalegrenses comer carne de cachorro, ou que influencers sem nenhum talento ou habilidade sejam mais famosos que os Beatles.

Segundo Cesarino, a plataformização e a redução da viscosidade sistêmica aumentam a probabilidade do surgimento de realidades bifurcadas. Daí decorre o título e o subtítulo de sua obra, onde o mundo está ao avesso na verdade e na política, ou seja, os movimentos antiestruturais antagonistas podem passar a assumir o protagonismo nas plataformas ou mesmo nas instituições políticas, assim como teorias absurdas de conspiração ou de pseudociências ganham visibilidade e status de verdade.

O resultado disso é um fenômeno onde, em situações de grande crise, fratura social e conflito, as massas tendem a produzir sectarismos que prescindem de lastro na realidade ou mesmo de algum conteúdo. Assim como os arquitetos da propaganda nazista, os estrategistas políticos que disparam as chamadas "fake news" direcionadas por técnicas de psicometria avançada e "big data" apostam de maneira certeira que os eleitores que têm medo do desemprego, da inflação, dos "bandidos", de imigrantes, dos "esquerdistas" etc. encontram um canal de descarga na crença em imagens sintéticas, "memes", bodes expiatórios, teorias conspiratórias, símbolos (sim-bolo denota integração de sentido, agregação).

Essa bifurcação, segundo Cesarino, é um fenômeno já descrito na bibliografia antropológica e se chama “cismogênese”.

No escalamento cismogênico, a forma vai assumindo precedência sobre o conteúdo, como se fosse necessário esvaziar aquela relação de toda substância para possibilitar a separação definitiva entre as partes. Qual o sentido, afinal, de se produzirem armas atômicas suficientes para destruir o mundo inteiro várias vezes? Como pode uma briga por causa da colher de manteiga enfiada no pote de mel levar à agressão verbal ou física? Isso ocorre porque a relação de oposição deixou de ser sobre o conteúdo em si: “Se a Globo é contra eu sou a favor”, não interessa qual a pauta em questão.” (Cesarino, 2023 p. 176).  

Um exemplo notório foi a CPI da Covid, onde o senador gaúcho Heinze ostentava na sua tribuna uma placa que indicava o número de pessoas infectadas e que sobreviveram ao vírus como se elas tivessem sido salvas pelo tratamento precoce e a política da imunidade de rebanho. Cesarino dedica um capítulo inteiro de seu livro a atuação de médicos brasileiros na propagação e paradigmas antiestruturais na ciência e as consequências cismogenéticas disso.

Dessa forma a cismogênese produz uma muralha de isolamento cibernético capaz de quase levar Jair Bolsonaro à reeleição, o que muito bem pode acontecer com Sebastião Melo, por mais absurdo que isso possa parecer. A explosão de fake news nas enchentes não é por acaso.

Apenas a cismogênese explica o fato de Eduardo Leite e Sebastião Melo não renunciarem ou cometerem suicídio. Pelo contrário, em uma bifurcação da realidade, eleitores e jornalistas acreditam que Lula não fez nada para ajudar nas enchentes, Paulo Pimenta iniciou sua campanha ao governo do RS, Melo é candidato à reeleição e Leite acredita ser um protetor do meio ambiente e futuro senador.

O antirrei

Outra sequela da falta de viscosidade da sociedade digital, segundo Cesarino, é a transposição macropolítica de alguns rituais de sociedades tradicionais da Europa que os antropólogos chamam de “teoria do antirrei”. Tais rituais são realizados através de festivais onde, durante alguns dias, todos os papéis de uma comunidade se invertem, homens agem como mulheres, senhores como escravos, e o principal: o lugar mais importante da comunidade, o do rei, é ocupado pelo cidadão menos capaz, mais insignificante, estúpido, ínfame. A figura do Rei Momo, o bufão que recebe as chaves da cidade no nosso Carnaval pode ser oriunda desses rituais.

Nos últimos anos o Brasil viu criaturas estúpidas, incultas e despreparadas, inimigas da democracia e marionetes do capital ocuparem o Congresso Nacional, as assembleias legislativas e os mais altos cargos do executivo, conquistando suas posições legitimados pelo voto popular em uma democracia farsesca em colapso.

Em 1999 José Saramago, após ganhar o Prêmio Nobel de literatura pelo “Ensaio sobre a cegueira”, uma alegoria profética ao Brasil dos anos 2020, proferiu aula magna na UFRGS, que eu tive a oportunidade de assistir presencialmente. A aula foi uma análise política e filosófica precisa do que viria a seguir, e nunca esquecerei a frase “nós discutimos tudo hoje em dia, menos a democracia”. De fato, o fascismo, o neoliberalismo e a o capitalismo de rapina no mundo digital transformaram nosso sistema democrático em instrumento de guerra e exploração.

A esperança agora é que, assim como a pandemia, a brutalidade material da total destruição do Rio Grande do Sul seja capaz de abrir os olhos dos eleitores e eleitoras e expulsar esses palhaços assassinos da vida pública. Ou nossos problemas estão apenas começando.

Fabio Dal Molin, psicólogo, psicanalista, doutor em sociologia, professor da FURG e pós-doutorando em psicanálise, clínica e cultura- UFRGS

@b.dalmolin, @autodefesa2024