REFLEXÕES

A solidariedade em uma sociedade da concorrência – Por Raphael Fagundes

É difícil pensar que após essa tragédia as pessoas de grandes posses irão mudar seus princípios, que a solidariedade se tornará uma moral cotidiana

Imagem Ilustrativa.Créditos: Reprodução /InstagramPH_Chico (Chico Santana)
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Nos jornais vemos manchetes como “Rede solidária: vejam os famosos que lideram apoio ao Rio Grande do Sul”.[1] O governador Eduardo Leite fez uma declaração polêmica em que suplica pela ajuda ao comércio local que, segundo o político, poderia ser prejudicado devido às doações oriundas de diversas regiões do Brasil. Vemos, portanto, dois tipos de concorrência: quem doa mais entre as elites e o prejuízo aos comerciantes que tanto lutaram para ter a sua lojinha. Um conflito claro entre a solidariedade e a concorrência.

O filósofo Michael J. Sandel aponta um elemento fundamental que sustenta a “tirania do mérito”: a retórica da ascensão. É “a promessa de que as pessoas que trabalham duro e seguem as regras merecem ascender até onde seus talentos e sonhos as levarem”.[2] A partir desta ideologia, as elites só se sentem confortáveis em doar, em ser solidárias, quando percebem que a desgraça alheia não foi ocasionada por falta do esforço pessoal.

Há contradições entre a moral declarada e a moral realmente vivida pelas pessoas na vida cotidiana. Pautando-se nas questões levantadas por Lawrence Kohlberg, Adela Cortina observa que há uma moral institucional, pensada, escrita, pautada nos valores iluministas que soa bonito, fraterno. E uma outra mais egoísta que pretende favorecer a si mesmo, seus familiares etc.[3] É como o discurso da ONU de um lado, e as palavras de Bolsonaro, do outro, que não esconde a intenção de favorecer um filho.

O fato é que a visão liberal tende à segunda moral - embora, em muitos casos, declare a primeira. Baseados na ideia de que a economia deve ser livre da intervenção estatal e que cada um deve usar os “recursos disponíveis” como bem entender, não há problema algum uma pessoa acumular uma imensa riqueza enquanto o outro morre de fome desabrigado.

Mas na hora da tragédia, há um conflito entre má consciência e má reputação. E Nietzsche deixou bem claro que “é mais fácil lidar com uma má consciência do que com uma má reputação”. Sabemos que muitos possuem uma consciência egoísta, que durante a pandemia aplaudiram as fatídicas palavras do ex-presidente sobre o alto número de óbitos causado pela Covid-19. Será que agora foram realmente tocados pelo sentimento de compaixão? Tanto a ONU (Unesco, Banco Mundial etc) quanto a extrema direita não são norteados por princípios solidários, mas pelo discurso liberal.

A consciência liberal

A consciência liberal é egoísta. Milton Friedman dizia que exigir “uma responsabilidade social” do capitalismo é “uma concepção fundamentalmente errada do caráter e da natureza de uma economia livre. Em tal economia, há uma e só uma responsabilidade social do capital - usar seus recursos e dedicar-se a atividades destinadas a aumentar seus lucros até onde permaneça dentro das regras do jogo, o que significa participar de uma competição livre e aberta, sem enganos ou fraude”.[4]

Vale destacar que a cooperação de que falam os liberais nada tem que ver com o social. Friedman deixa bem claro ao dizer que “só há dois meios de coordenar as atividades econômicas de milhões. Um é a direção central utilizando a coerção - a técnica do Exército e do Estado totalitário moderno. O outro é a cooperação voluntária dos indivíduos - a técnica do mercado”.[5]

A defesa da liberdade econômica dos liberais é confundida com o anarquismo de forma estapafúrdia. Isso porque os conceitos de cooperação entre as duas ideologias são incompatíveis.

Antes temos que dizer que o próprio Friedman era contrário à anarquia. “Por mais atraente que possa o anarquismo parecer como filosofia, ele não é praticável num mundo de homens imperfeitos”.[6] Em outro momento ele diz: “O liberal consistente não é um anarquista”.[7] 39.

O anarquista trabalha por meio de uma lógica humana, não baseada nos ganhos do mercado. O anarquismo é construído pela cooperação entre trabalhadores sob nenhuma autoridade ou punhado de leis. Bakunin, ao criticar Karl Marx, demonstra que a Internacional deveria ser composta pela solidariedade entre os trabalhadores e não uma reunião que propunha uma forma de governo: “Porque a unidade real e viva da Internacional consiste na organização verdadeira desta solidariedade mediante as ações espontâneas das massas operárias e da federação livre – quanto mais livre, mais poderosa – das massas trabalhadoras de todos os idiomas e nações e não mediante a unificação obtida por decretos e sob o tacão de algum governo”.[8]

A visão anarquista acredita menos na guerra, na luta voraz de uns contra os outros (como está explícito na sociedade do desempenho e da concorrência), que na solidariedade, como força motriz da evolução humana. Nos afirma Kropotikin, famoso anarquista russo: “Considerando os incontáveis fatos que podem ser apresentados para corroborar essa visão (darwinismo social), podemos dizer com segurança que tanto a ajuda mútua quanto a luta de todos contra todos são uma lei da vida animal; mas, enquanto fator de evolução, a primeira tem provavelmente uma importância muito maior, na medida em que favorece o desenvolvimento dos hábitos e características que asseguram a manutenção e a evolução da espécie, além de maior bem-estar e melhor qualidade de vida para o indivíduo com o menor dispêndio de energia”..[9]

Na filosofia anarquista o conceito de cooperação é indissociável ao de solidariedade como nos mostra Enrico Malatesta: “A organização outra coisa não é senão a prática da cooperação e da solidariedade, é a condição natural, necessária, da vida social, é um fato inelutável que se impõe a todos, tanto na sociedade humana em geral quanto em todo grupo de pessoas que tenha um objetivo comum a alcançar.”[10]

Como um indivíduo pode ser solidário ao mesmo tempo em que defende uma sociedade egoísta? Parece um vampiro que tem dó da vítima. Lógico que toda ajuda é necessária ao povo gaúcho. Mas ser solidário deve ser um princípio antropológico norteador da contemporaneidade. É difícil pensar que após essa tragédia as pessoas de grandes posses irão mudar seus princípios, que a solidariedade se tornará uma moral cotidiana. O certo é que, enquanto a lógica dominante for a do desempenho e da concorrência, o homo oeconomicus prevalecerá sobre o homo reciprocans.

 

[1] https://www.google.com/amp/s/oglobo.globo.com/google/amp/cultura/noticia/2024/05/08/rede-solidaria-veja-os-famosos-que-lideram-apoio-ao-rio-grande-do-sul.ghtml

[2] SANDEL, M. A tirania do mérito. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2021, p. 94.

[3] CORTINA, A. Aporofobia. São Paulo: Contracorrente, 2020, p. 74-75.

[4] FRIEDMAN, M. Capitalismo e liberdade. São Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 120.

[5] Id., p. 21.

[6] Id., p. 32.

[7] Id., p. 39.

[8] BAKUNIN, M. O conceito de liberdade. Porto: RES Limitada, 1975, pp. 156-157.

[9] KROPOTIKIN, P. Ajuda Mútua: um fator de evolução. São Sebastião: A Senhora Editora, 2009, p. 22. Disponível em: https://www.anarquista.net/ajuda-mutua-um-fator-de-evolucao-de-piotr-kropotkin-livro/. Acesso em: 26 de jul. 2019.

[10] https://www.marxists.org/portugues/malatesta/1927/mes/anarquia.htm.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.