OPINIÃO

Sobre a Finitude – Por Ana Beatriz Prudente Alckmin

Estamos sempre prontas a ajudar, fazemos tudo de forma muito bem-feita, quase perfeita, e o nosso envelhecimento é encarado como um defeito

Imagem ilustrativa.Créditos: Pixabay Free
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Parece errado uma mulher admitir que está envelhecendo. Parece errado uma mulher admitir que seu tempo em algum lugar está acabando. Na forma como somos desenhadas na sociedade, finitude não é algo para as mulheres. Somos seres no imaginário das pessoas. Estamos sempre prontas a ajudar, fazemos tudo de forma muito bem-feita, quase perfeita, e o nosso envelhecimento é encarado como um defeito. Mas como pode ser defeito aquilo que de fato nos torna humanas? É sobre finitude.

Como crítica de teatro, o universo ainda muito masculino, eu compreendo que o meu papel não é simplesmente fazer observações técnicas, sobre como os atores interpretam os papéis, ou palpites técnicos sobre iluminação, figurino e até mesmo observações minuciosas de roteiro. A crítica de teatro vai além. Obviamente traz todo esse arcabouço técnico, mas eu quero externalizar como aquela peça de teatro dialoga com o público, com a sociedade, com os nossos anseios, desejos e fragilidades.

Uma das maiores torturas que nós mulheres sofremos é o mundo que quer nos ensinar a como sermos mulheres, o mundo que nos empurra para uma vergonha das nossas curvas, dobrinhas, marquinhas, que na verdade é tudo o que nos torna únicas. Nossas diversas curvas, nossas diversas cores, nossas diversas vontades. Tudo isso nos empurra para o mundo onde nenhuma mulher é igual a outra mulher. Portanto, tentar nos dizer como é ser mulher é absolutamente equivocado.

É deslumbrante quando mulheres que possuem algum tipo de protagonismo mostram que não têm medo do fim, seja o fim das suas carreiras, seja o fim da sua juventude, seja o fim de seu relacionamento, talvez até o fim da própria existência. Quando essas mulheres se mostram prontas para o fim, maduras para encarar o que quer que tenha que vir pela frente, mas mantendo a vitalidade. Quem disse que encarar o fim, ou se preparar para o fim, significa falta de vitalidade? Há vida na maturidade de viver os segundos seguintes, consciente da trajetória que viveu, consciente do caminho que trilhou e das parcerias que fez. Talvez essa seja uma das maiores maturidades possíveis do ser humano: encarar a finitude com vitalidade, sem desânimo e, sim, ainda produzindo, ainda oferecendo muito ao mundo e promovendo reflexões das mais belas, de quem realmente viveu a vida.

Há duas mulheres na História que são exemplos de força, exemplos de vitalidade, exemplos de maturidade. Cada uma com sua própria história, cada uma com suas peculiaridades, cada uma com sua ideologia, mas, sem dúvida alguma, duas mulheres que foram marcantes para a nossa História. Dona Maria I, mãe de Dom João VI, e Rita Lee. Para a nossa alegria, duas grandes peças de teatro chegaram a São Paulo trazendo a história destas mulheres. Suas forças, que fizeram delas duas verdadeiras fortalezas femininas. Cheias de contradições e, acima de tudo, de convicções.  

Em uma nova jornada nos palcos, a talentosa atriz Mel Lisboa retorna à cena como protagonista de espetáculo musical, trazendo à vida a icônica figura de Rita Lee. Inspirado na autobiografia da cantora, o musical intitulado "Rita Lee – Uma Autobiografia Musical" promete uma experiência única para o público. Sob a direção de Marcio Macena e Débora Dubois, a produção estreou em 26 de abril, no Teatro Porto, em São Paulo. Com apresentações programadas até 15 de setembro, nas noites de sexta-feira e sábado às 20h, e nos domingos às 17h. A história ganha vida através da performance de Mel Lisboa, que já se destacou em sua interpretação anterior como Rita Lee. A presença surpresa da própria Rita durante uma das apresentações anteriormente adicionou um toque especial de autenticidade ao espetáculo, solidificando o sucesso da atriz nos palcos nacionais, inclusive lhe trazendo prêmios. Juntando-se a Mel Lisboa no elenco, estão talentosos artistas como Bruno Fraga, Fabiano Augusto, Carol Portes, Debora Reis, Flavia Strongolli, Yael Pecarovich, Antonio Vanfill e Gustavo Rezé Rochilides Junior, sob a direção musical de Marco França e Marcio Guimarães. Esta nova produção, diferente da anterior, baseia-se na autobiografia lançada em 2016, que se tornou um fenômeno editorial no Brasil. O livro oferece uma visão íntima dos altos e baixos da carreira da roqueira, destacando sua autenticidade e impacto duradouro como fonte de inspiração para muitos. A ideia do musical veio após a atriz gravar a versão do audiobook do livro interpretando Rita.

Na peça, Rita Lee, com sua alma jovem, leva a vida com muita intensidade, sem medo de realizar seus desejos. Ao longo de sua jornada, ela enfrenta a morte e suas perdas, mostrando como isso a abalou, dada sua forte ligação com a vida e seu valor inestimável. Rita não era destrutiva; ao contrário, era construtiva, envolvendo-se em projetos artísticos, música e composição. Sua vitalidade era evidente. Testemunhando as mortes de importantes figuras artísticas como Elis Regina, Cazuza, Raul Seixas e Hebe Camargo, Rita sentiu a perda de parceiros. Pessoas que ela admirou, que reconheceu como seus pares no mundo artístico, que atravessaram a sua biografia ou, o contrário, cuja biografia ela atravessou, e que deixaram marcas em sua trajetória. Alguns afirmam que a cultura do "Selinho", no programa de Hebe Camargo, teve início com Rita Lee, mostrando como as duas artistas influenciaram uma à outra. Mas a peça também mostra que ela se abalou com essas mortes, que ela se entristeceu com essas perdas, e como artista, uma mulher sensível, ela carregou essas dores.

A experiência da morte e da perda é multifacetada, abrangendo desde lidar com o término de algo querido até o enfrentamento da própria mortalidade. Trata-se, em essência, de um processo de luto que, de forma simplificada, pode ser compreendido a partir de conceitos como subjetividade, sujeito e objeto. No entanto, essas categorias não são isoladas; são interligadas, formando uma complexa teia de relações.

Somos, em essência, uma interação constante entre nossos diversos aspectos: corpo, identidade de gênero, relações interpessoais e papel na sociedade. A morte e a perda representam momentos em que essa interação é abruptamente interrompida, causando desconforto e desequilíbrio em nossa identidade e no sentido de quem somos. A dor da perda pode se manifestar de diversas formas: crônica, súbita, real ou imaginária, afetando aspectos tangíveis e intangíveis de nossa existência. Podemos perder um emprego, um ente querido, a juventude ou até mesmo partes de nossa própria identidade. A perda nos confronta com a fragilidade de nossa própria existência e nos desafia a redefinir quem somos.

No entanto, a perda não significa necessariamente o fim. Ao contrário, pode ser vista como uma oportunidade de renovação e crescimento. Quando perdemos algo valioso, não estamos apenas nos desapegando do objeto em si, mas também incorporando aspectos desse objeto em nossa própria identidade. É como se carregássemos um pedaço do outro conosco, transformando a perda em uma forma de continuidade e conexão.

Nesse processo de elaboração do luto, é fundamental aceitar a perda do objeto enquanto se reconhece e se valoriza o que foi conquistado através dele. Essa é a essência do conceito freudiano de luto e melancolia: a capacidade de manter uma ligação simbólica com o objeto perdido, mesmo após sua partida.

Essa dinâmica de absorção de traços do outro é uma parte essencial do processo de elaboração do luto. À medida que nos adaptamos à ausência do que foi perdido, encontramos maneiras de incorporar seus aspectos em nossa própria vida, honrando sua memória e transformando a perda em uma fonte de crescimento e renovação.

E os vazios não são apenas impulsos. Assim, simultaneamente, é um conjunto de tudo isso, uma interconexão única. A esfera é sempre um dialeto conceitual, é sempre a união entre sujeito e objeto. A morte, a perda, ocorre quando essa complexa engrenagem, essa arquitetura intrincada dentro de nós, sofre uma ruptura. Isso machuca, por vezes dilacera. A morte, a perda, corta como uma lâmina, gradualmente, profundamente.

Quando nos despedimos de um vínculo emocional, deixamos uma parte de nós mesmos com quem partiu. A dor da perda pode ser transformada, dependendo do apoio da família, amigos e rede afetiva. O luto é uma jornada plural e variada, influenciada pela cultura e história de vida de cada um. Não existe uma única maneira correta de vivenciar o luto; é uma experiência única para cada indivíduo. Enfrentar a vida após uma perda tão profunda pode parecer desafiador, mas é importante permitir-se sentir todas as emoções e buscar apoio emocional. É preciso buscar formas que ofereçam perspectivas sobre como honrar a memória dos que se foram, celebrando a beleza dos momentos compartilhados em vez de se prender à tristeza da perda.

A outra peça que me transportou para uma reflexão sobre finitude foi uma montagem dirigida por Cassio Scapin com texto inédito de Cássio Junqueira, estrelado pela companhia portuguesa Teatro Livre, que fez uma rápida passagem pelo Brasil. Inspirada na vida de Dona Maria I e do seu filho Dom João VI, monarcas de Portugal no Brasil Colônia, o espetáculo nos leva para uma relação entre mãe e filho. Ali, diversas questões essenciais da existência atravessam essa relação. A questão de gênero, a chegada de transformações sociais, a questão etária e, sobretudo, as questões de identificação que fazem um grupo ser classificado como uma classe social. Dona Maria, ainda monarca, ainda rainha, já em uma fase de desgaste, está ciente da própria finitude e da finitude da coroa em sua cabeça, começa a entender a finitude da própria monarquia com as mudanças sociais que chegam com a Revolução Francesa e reflete sobre como foi difícil ser uma mulher em um lugar de poder. Mas o que torna, de fato, essa peça especial são todas as idas e vindas dela, percebendo a finitude daquele momento histórico, que era o momento de virada para novos tempos.

A peça teatral suscita uma impressão profunda e complexa, na qual a atriz portuguesa e o ator brasileiro radicado em Portugal há muitos anos personificavam, respectivamente, Dona Maria, a primeira rainha de Portugal, e seu filho, Dom João VI, que posteriormente ascendeu ao trono como rei. Sob essa perspectiva, todo o enredo da peça orbitava em torno das reflexões da rainha sobre seus temores de perda, não apenas do poder que detinha, tema sobre o qual ela refletia com frequência, preocupada com a possibilidade de usurpação de seu trono, mas também sobre sua própria finitude e deterioração mental. A discussão em cena não se limitava apenas à ameaça de perda do poder monárquico, mas também abordava a questão da capacidade das mulheres para governar. Dona Maria era confrontada com a dualidade de ser mulher em um mundo dominado por homens, onde sua liderança era questionada não apenas por sua condição de gênero, mas também por supostas limitações mentais atribuídas a ela. Essa ambiguidade permeia toda a trama, gerando uma atmosfera de incerteza e crise. A peça explora as complexidades das normas de gênero e os padrões de comportamento socialmente impostos. Ela destaca a ironia de como os homens, mesmo quando percebidos como loucos, raramente perdem o poder, enquanto as mulheres enfrentam uma perseguição implacável e são frequentemente desqualificadas de assumir posições de liderança. Essa crítica social incisiva ressoa ao longo da narrativa, evidenciando as injustiças e desigualdades arraigadas na estrutura de poder da sociedade.

Em suma, a peça transcende o mero entretenimento, mergulhando nas profundezas da psique humana e nas complexidades das relações de poder de uma era passada. Ao expor as contradições e injustiças enfrentadas por Dona Maria, ela nos convida a refletir sobre questões atemporais de gênero, poder e identidade, tornando-se um veículo poderoso para o questionamento e a introspecção.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.