OPINIÃO

O muro do Leite – Por Normando Rodrigues

Enquanto não olharmos através do muro da segregação social, não conheceremos os verdadeiros culpados: os ricos e os que para eles governam

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A história do capitalismo está repleta de muros erguidos para separar os pobres da riqueza que produzem e assim manter a concentração de renda.

As sangrentas revoluções e guerra civil inglesa do século XVII e a própria Revolução Industrial naquele país, não seriam as mesmas sem as Leis de Cercamento, pomposo nome pelo qual os ricos muraram e se apropriaram de terras públicas antes voltadas à sobrevivência dos pobres, rotulado o roubo de “sagrado direito de propriedade”.

Grosso modo, o neoliberalismo promove hoje uma plêiade de “leis de cercamento”, ao tomar para os ricos verbas públicas antes dedicadas à educação, saúde, previdência, saneamento e outros direitos sociais dos pobres. Por óbvio, também o dinheiro da proteção ao meio ambiente e das adaptações à mudança climática é “murado”, de modo a que os ricos se favoreçam.

Neoliberal dogmático, o enlameado governador Eduardo Leite foi bastante sincero quanto ao cercamento do gasto público, ao admitir em 20 de maio que estudos científicos alertaram para a possibilidade do desastre ambiental e que, a despeito dos alertas, nada fez porque seu governo tem outras prioridades: "o que se impunha era a questão fiscal".

Ter colocado as contas do governo do RS acima da vida dos pobres mereceu imediatos elogios do jornalzão entrevistador do “fiscalmente responsável”. Concedem ao criminoso social as láureas dadas a Milei, campeão argentino nas categorias fome e miséria, vitória ressignificada em “experimento que tem tudo para ser bem-sucedido”.

Eduardo Leite e muitos outros governam para os ricos e os porta-vozes dos nababos constroem mentiras ocultadoras do muro da desigualdade, das quais, no plano ambiental, a mais grave é a que prega a “democracia” dos eventos climáticos extremos e a “igualdade” da devastação ecológica.

Muito ao contrário, os verdadeiros responsáveis pela hecatombe climática, os ricos, via de regra não são atingidos. E quando o são, facilmente desviam os ônus para as costas dos pobres, vide o didático caso do condomínio de luxo que em Pelotas drenou as águas do próprio alagamento para a comunidade pobre de Passo dos Negros, no bairro de Navegantes. Uma prática que é antes regra, do que exceção, em termos de distribuição “murada” dos estragos.

Se a existência dos ricos no local afetado for inviabilizada, levantarão os braços e desenterrarão suas sugadoras raízes para as cravar em outro local, mais benfazejo à acumulação de riqueza e abrigado por nova muralha, mudança e construção certamente acolhidas por generosas renúncias fiscais da parte dos Eduardos Leites. Já os pobres, não têm essa opção e a rigor nenhuma outra.

Na contracorrente da ocultação do muro, há poucas semanas a mídia hegemônica expôs com desagrado a pesquisa global do Instituto Ipsos, segundo a qual o Brasil é o país com maior percepção de que a desigualdade é o principal problema social, dentre 29 escrutinizados.

Embora esse “maior” corresponda a somente 24% dos brasileiros que percebem o “muro”, o dado se soma à noção de que a economia funciona para beneficiar os ricos (74% dos entrevistados) e à leitura de que mais ações precisam ser tomadas no combate à desigualdade (61% dos ouvidos).

São bons sinais, não obstante talvez apenas reflexos de uma realidade mais cruel do que o olhar de Eduardo Leite: dentre 160 nações, o Brasil foi o 11° país na escravização de seres humanos em 2023, conforme o índice da organização internacional “Walk Free”. O muro, em Pindorama, é bem alto.

Num país em que a escravização é uma chaga aberta, é normal que defensores da segregação social, como Eduardo Leite, sejam preservados. Entrevistado, ninguém lhe questiona a razão de ter destinado à Defesa Civil minguados 0,009% do orçamento estadual, apesar do confessado alerta. No máximo irão edulcorar o “deslize” da fala contra doações, já que acordes em ser necessário que os humanos passem frio, para que o mercado se aqueça. 

Mas há uma obra cujos escombros imaginários têm o potencial de soterrar Eduardo Leite. Em 2021 o governador sustentou em vídeo a remoção do muro do Cais Mauá, parte vital do sistema contra enchentes de Porto Alegre. Polidamente indagado se havia arrependimento a respeito, o monstro, em plural majestático, disse nunca ter dito “que os muros eram desnecessários e que deveriam sair dali.”.

Para desgraça de Eduardo Leite, o vídeo está disponível e nele o governador é taxativo:

 “sem ter aquele muro que dividia (atenção à conjugação no pretérito obviamente imperfeito) o antigo porto, da Cidade...”

Para além de palavras, o filminho é acompanhado de imagens do projeto urbanístico defendido por Eduardo Leite e nelas não há barreira alguma entre as águas do Guaíba e a área urbana, desmentida sua atual tentativa de justificar a fala com “alternativas ao muro”.

Enquanto não nos curarmos da cegueira que impede apontar os verdadeiros culpados por tragédias de dimensões riograndenses, elas não só se repetirão como continuaremos a eleger os Eduardos Leites obcecados pela destruição de outro tipo de muro. Os poucos muros que protegem os pobres.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.