OPINIÃO

“Roberto Campos é um...” (E isso é pessoal) – Por Normando Rodrigues

Em outubro de 2001, desaparecia Roberto Campos e o grande mineiro Ziraldo escreveu uma “elegia” na revista “Bundas”, herdeira do antigo “Pasquim”

O cartunista Ziraldo.Créditos: Fernando Frazão/Agência Brasil
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No momento em que Roberto Campos Terceiro tenta blindar o controle dos ricos sobre a economia, contra qualquer “interferência” da soberania popular, talvez seja útil lembrar o que Ziraldo pensava a respeito do avô do sujeito, Bobby Fields, The First.

Ziraldo virou lembrança. E é exatamente a lembrança, a memória, a história, o que diferencia nossa espécie das demais. É o que ensina.

Ziraldo não cabe nos limites deste texto. Os bons, os imprescindíveis, não são assim redutíveis.  Mas, abstraindo o Ziraldo que enfrentou a Ditadura rindo e fazendo rir, e esquecendo muitos outros feitos seus, creio que três ziraldices merecem menção. São quase “minhas”.

Vale vir primeiro a maluquicezinha do menino, da namoradinha do menino, da professora, do Vô Passarinho e de toda a turma. Combinadas ao respeito à diversidade retratada na vida da cor Flicts, essas doideirazinhas constituíram uma poderosa fórmula de cultivar gente humana, gente que gosta de gente, gente que sabe que a vida tem lado e que se coloca do lado certo da vida. Gente que jamais votaria em qualquer das hoje viventes reencarnações de Adolf Hitler, fosse Bolsonaro, Milei ou Ventura.

É sempre ruim usar a 1ª pessoa. Confesso, porém, ser reconfortante olhar para trás e reconhecer que essas absurdidades literárias me ajudaram a fazer crescer cinco filhos, todos do lado certo da vida e visceralmente avessos ao fascismo. E é também muito pessoal a leitura de outra mais remota diabrura de Ziraldo que segundamente registro.

A peraltice se deu em novembro de 1975. Contudo, para dar conta de sua relação com minha afetividade, devo voltar mais quatro décadas, desde aquele remoto ano em que o Vietnã derrotou os EUA, Moçambique e Angola conquistaram a independência e os generais-boçais torturaram e mataram Vladimir Herzog. Vamos, então, ao ainda mais remoto período de 1936-1939.

A tradição oral familiar me legou a história de Maximiano Rodrigues Murilo, um bisavô imigrante galego, expulso de lá pela fome e expulso de Laranjeiras para a Pavuna, levando mulher e dúzia de filhos, pelas reformas urbanas dos ricos. Contava-se que Max chorava copiosamente ouvindo no rádio as notícias da Guerra Civil Espanhola e praguejando contra Franco e seus outros generais-boçais.

Foi contra a brutalidade fascista manifestada no bombardeio da basca Guernica que Picasso pintou seu quadro em 1937. E em 1975, inspirado no “Guernica” do irrequieto malaguenho, Ziraldo retratou em charge muda a chegada do monstruoso Franco num inferno onde ansiosos demônios o aguardavam aos dentes, tridentes e facas.

Um FDP não se redime na morte. Uma outra morte de perniciosa personagem foi também brilhantemente brindada por Ziraldo, esta por escrito. Em outubro de 2001, desaparecia Roberto Campos e o grande mineiro escreveu uma “elegia” na revista “Bundas”, herdeira do antigo “Pasquim”. Em resumo, Ziraldo narrou que “morrera um FDP”, um inimigo dos brasileiros que dedicara a vida inteira contra o desenvolvimento de nosso país e em prol dos ricos e do Tio Sam. E aqui outra pessoalidade se funde à ziraldice.

É que meu avô paterno se chamava Giuseppe Felicio, famélico imigrante italiano que se tornou genro do mencionado Maximiano e que, por rocambolescas razões, mudou o nome para José Rodrigues. Giuseppe/José morreu de tuberculose em 1951 e no leito de morte proferiu três orações absolutas a meu pai, na época com 14 anos: “Não se bate em mulher. Não se bate em criança. E Roberto Campos é um ...”.

Dado o legado familiar, o texto de Ziraldo em 2001 entrou-me pelos olhos e encontrou os ecos da fala de meu avô, de meio século antes. Isso numa época em que FHC se empenhava na destruição de tudo o que é público.

Infelizmente o neoliberalismo cravou raízes na mentalidade coletiva e hoje as viúvas do vivo FHC e do insepulto Bobby Fields, The First, espancam o governo Lula, o único acionista controlador que não tem o direito de mandar nas próprias empresas.

Nesse cenário, talvez seja oportuno lembrar do juízo de Ziraldo no momento em que Roberto Campos Terceiro urde a captura completa do Banco Central pela mítica entidade chamada “Mercado”, perseguindo a eterna meta neoliberal de blindar o controle dos ricos sobre a economia, contra qualquer “interferência” da soberania popular.

É de família!

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.