Desde meados dos anos 2010 o movimento intersexo tem atuado em terras brasileiras. Um dos vários desafios que temos enfrentado para nos fazermos reconhecidos, e conhecidos, é retirar a ideia da sociedade brasileira de que somos hermafroditas.
Essa ideia remonta aos tempos gregos e à sua mitologia que fazia parte da sociedade daquela época. De forma bem resumida, uma ninfa apaixonada por hermafrodito fundiu seu corpo com o dele, e daí a ideia que carregamos até os dias de hoje, de que o intersexo é um corpo com dois sexos dentro dele.
A intersexualidade, mais do que isso na realidade, contempla vários estados de uma condição biológica que até onde se tem conhecimento são mais de 40. Isso quer dizer que resumir estes estados a um corpo com dois sexos seria reduzir demais suas manifestações.
Assim, pode-se dizer que retirar do senso comum esse resumo e mito é uma tarefa hercúlea. Ao mesmo tempo, pessoas no movimento acham que deveríamos facilitar a comunicação com o público e falar menos “biologiquês”, ou “mediquês”. Confesso que esse é um dos mais importantes dos nossos desafios.
Ao mesmo tempo, por nossa condição estar ligada aos hormônios e às características sexuais do corpo humano, creio que desatrelar nossa biologia do mitológico é urgente. Ainda mais se lembrarmos que, por causa disso, no passado já despertamos a curiosidade e o desejo sexual pelo exótico. Porém, precisamos reiterar que não somos itens de exibição, mas sim parte da evolução humana, e não uma aberração ou anomalia.
A sociedade em que vivemos deseja regular tudo, ela normatiza nossa vida e nossa sexualidade. O rosa e o azul são parte da regulação que parece acontecer só por fora. Utilizamos o prefixo “endo” para ressaltar que esta regulação se apresenta até nas taxas hormonais ou nos nossos cromossomos.
Para melhor entendimento, é preciso saber que na endonormatividade (Nowakoski; Sumerau; Lampe, 2020) há um número padrão para as taxas hormonais estarem no lugar, e que os nossos cromossomos só podem ser xx ou xy. Assim, outras formas de se comportarem, tais como xyy, xxy ou x0 estariam fora desse padrão. Desta maneira, essa regulação se importaria não somente com o externo do nosso corpo, mas também com o que está dentro.
Essas padronizações estão ligadas às características sexuais do corpo humano. Nos corpos endossexo (Carpenter et al, 2022) , ou seja, não-intersexo, estas características são observadas pelos médicos, como por exemplo os genitais, que devem estar no tamanho correto, e se suas taxas hormonais e cromossomos nos exames aparecerem como o esperado. E no que diz respeito à sexualidade, espera-se que no futuro cumpram a heterossexualidade, que estejam preparados para casar e se reproduzir.
A endonorma, ao ver corpos que apresentam diferentes estados intersexo, trata logo de utilizar o “apagador cirurgiador”. Este corpo alterado para ser tal qual o endossexo nunca deixará de ser intersexo, pois apesar de se mudar a forma original, os corpos que tentaram mudá-lo nunca o verão como endossexo, mas sim como o corpo intersexo que chegou.
Apesar de buscar fazer com que o leitor entenda o mundo do qual falo, que a seu ver pode parecer estranho e longe da imaginação, ele está todos os dias ao seu lado: no metrô, no ônibus, no trem, no elevador, no vizinho do apartamento, ou ainda na casa do outro lado. Talvez passemos desapercebidos ou até despertemos uma certa estranheza a seus olhos, e por mais que a endonorma queira nos eliminar, somos muitos, e MUITO resistentes.
Referências
CARPENTER, M; Dalke, K.; Earp, B. D. Endosex. J Med Ethics. 2022. Disponível em: https://doi.org/10.1136/medethics-2022-108317.
NOWAKOWSKI, Alexandra C. H.; SUMERAU, J. E.; LAMPE, Nik M.
Transformations in queer, trans, and intersex health and aging.
MARYLAND, LEXINGTON BOOKS, 2020.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.