Minha formação é em ciências sociais. Durante as aulas, muitas vezes, eu ouvia os professores falarem a palavra desenvolvimento e ficava pensativo. Nas aulas de economia, por exemplo, essa palavra sempre era usada para se referir ao sistema econômico em que vivemos. Porém essa palavra não era utilizada apenas para se falar de economia, mas também podia ser usada para falar da cultura, da industrialização, do progresso da sociedade, enfim.
Você deve estar achando estranho falar desse assunto numa coluna que discute gênero e sexualidade. Meu contato com essa discussão envolvendo o que move essa coluna foi com a tese de Anacely Costa e, recentemente, tem sido fruto de minha reflexão. O texto da tese analisa a ideia de desenvolvimento atrelada a intersexualidade e seus impactos na construção de um movimento social brasileiro e a análise dessa concepção diante desse “saber-corpo”.
O que chamo aqui de “saber-corpo” é a reflexão desse sujeito em comparação a outros, sejam eles(as) colegas de classe, familiares ou amigos (as/es). Neste sentido, esta pessoa pode se sentir atrasada ou adiantada, tendo um pênis maior do que os amiguinhos ou menor do que o deles, uma vagina mais curta, ou então um clítoris “avantajado”. Podemos entender aqui que essa ideia do desenvolvimento sexual não só persegue adolescentes ou adultos, mas também está na prática da clínica médica.
Entre o clítoris avantajado ou o pênis “subdesenvolvido” está intrínseca a ideia de progresso atrelado às características sexuais. Este corpo, cujas características esperadas não apareceram, são submetidos a exames e diversas análises na busca por responder o que há de errado: por que esse corpo não conseguiu chegar lá? Pensando que esse “chegar lá” aqui são características finalizadas, será que esse fim é o da espera social ou só da espera corporal? Seguindo essa lógica de “chegar lá”, ou de sucesso da natureza diante do corpo não finalizado pelo processo de desenvolvimento biológico, caberia à medicina assumir essa finalização e assim garantir um reconhecimento deste corpo para si e para a sociedade.
Precisamos lembrar, porém, que corpos têm ritmos de desenvolvimento próprios e que deveriam ser respeitados. Dessa maneira, uma saúde que não inclui a pessoa na tomada de decisão sobre o futuro do corpo não é uma saúde que busca ser singularizada, mas sim um cuidado que se orienta por padrões que não valorizam a subjetividade na tomada de decisão.
Progresso ou desenvolvimento também estão presentes nas lutas que fazemos como movimentos sociais. Aqui, parece que a luta deve ser feita até atingir seu “sucesso”, ou seja, conquistar todas as políticas públicas possíveis. Aparenta, que a luta social que fazemos objetive um reconhecimento capaz de fazer políticas públicas e também para sermos recebidos pela sociedade como parte da mesma.
Pergunto se esse desejo de quem faz movimento social é possível no sistema econômico em que vivemos. O desejo de conquistar um reconhecimento capaz de sermos como “todos os outros”, ou seja, sermos a não-diferença que não sofre perseguição ou discriminação, mudarmos o sistema, sermos parte dessa sociedade em que vivemos sem nos preocuparmos com a nossa presença e de pessoas ao nosso redor.
Não sei se temos condições reais de fazer isso na geração que vivemos, acho que temos mais luta pela frente. Temos uma sociedade a reconstruir, uma sociedade capaz de reconhecer seus erros, ser capaz de fazer justiça com reparação histórica e de ser capaz de reescrever e ensinar uma nova história. Em síntese, um momento de reparação a qualquer grupo vulnerabilizado.
Feitos acompanhados da palavra progresso ou desenvolvimento vêm ligados a essa ideia capitalista de sucesso. Penso, porém, que no cotidiano da luta social, precisamos fazer diferente, desatrelar o radical “des” da palavra envolvimento. Nesse sentido, quando isolamos o radical e somente pensamos em envolvimento, acredito que retiramos a ideia de progresso que caminha junto ao significado de desenvolvimento.
Possibilitamos mais acolhimento e reconhecimento a corpos alijados do dia a dia social, focamos mais em trabalhar por movimentos sociais que focam mais em estar com os seus e repensar uma prática que respire menos o significado de sucesso como fim das políticas públicas. A prática em saúde para a pessoa intersexo precisa pensar menos em desenvolvimento e agir pensando num bem-viver, menos onde o sujeito seja objeto de um cuidado e mais sobre uma prática social cada vez menos racista, sexista, transfóbica, capacitista, interfóbica, entre outras.
Finalizo dizendo que a dura realidade a cada dia parece impedir o sonho, a utopia, pois o pão da luta é para hoje. Entretanto, se a dura realidade nos impede de sonhar um futuro outro, será que há futuro para a luta das próximas gerações?
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.