Quem trabalha com jornalismo no Brasil sabe que existe uma espécie de “selo” informal “concedido” por quem trabalha nos principais grupos da mídia comercial que separa as empresas entre aquelas que fazem “jornalismo profissional” e “as demais”. Pois é, se você não é da Folha, do Estadão, da Globo, da Record e dos outros satélites mais tradicionais, mesmo que pequenos e com coberturas abertamente enviesadas, então estamos falando de um produtor de “jornalismo amador”.
Dispensa relembrar aqui os grandes feitos do “jornalismo profissional” ao longo de toda a extensa história da imprensa no Brasil, como o apoio ao golpe militar de 1964 e à Operação Lava Jato, mas, nesta quinta-feira (29), a Folha de S.Paulo e o portal g1, da Globo, “inovaram” ainda mais nessa maneira séria, austera, imparcial e potente de se fazer “jornalismo”.
Comboios humanitários com toneladas de alimentos estacionaram em meio ao povo, na região de Sheikh Ajleen, na Faixa de Gaza, e passaram a ser alvo de uma disputa desesperada por parte de uma multidão de famintos, que há quatro meses é exterminada por ações militares devastadoras levadas a cabo por Israel. Quando as milhares de pessoas finalmente conseguiam pegar um pouco de farinha, ou de grãos, para que não morressem por inanição, as IDF (Forças de Defesa de Israel) abriram fogo com artilharia, tanques e drones, causando um evento sangrento que até o momento registra 104 mortos e mais de 740 feridos.
Estamos falando de um ato absoluto de terror, assassinato em massa e covardia brutal. Um massacre. Sim, massacre, que de forma claríssima viola convenções, leis e tratados internacionais. E foi assim que toda a imprensa, em todos os países do mundo, incluindo os EUA, noticiou o fato, até porque o próprio Estado de Israel admitiu o que fez, obviamente com uma desculpa que transita entre o “erro” e a “ameaça” iminente. Há vários vídeos nas redes, inclusive registros com equipamentos militares feitos pelos próprios agressores.
“No cenário caótico de Gaza, muitos mortos e feridos após israelenses abrirem fogo”, diz o The New York Times. Já o El País, da Espanha, traz em sua manchete “Israel dispara contra multidão que pegava alimentos em incidente que deixa mais de 100 mortos em Gaza”, ao passo que o Clarín, da Argentina, destaca que “Mais de cem palestinos morrem numa operação militar numa entrega de ajuda”.
Já por aqui, no Brasil, a Folha deu um jeito de colocar o grupo Hamas no meio de sua chamada. “Hamas acusa Israel de matar 112 civis em fila de ajuda humanitária”, mancheta escandalosamente em sua home o “jornalão” da Barão de Limeira. Agora, “inovação” mesmo foi a do portal g1, que num primeiro momento usou o termo “confusão” para se referir a uma chuva de tiros de fuzil, artilharia, canhões e foguetes: “Confusão em distribuição de comida em Gaza deixa mais de cem mortos”.
Mas se você pensa que a avalanche de críticas e insultos vinda da audiência tirou a “coragem inovadora” do portal de notícias da Globo, se engana. Minutos depois a chamada foi alterada para “Distribuição de comida tem mais de 100 mortos em Gaza; Hamas acusa Israel”.
Por Deus... Há vídeos, tanto dos equipamentos militares israelenses quanto de cidadãos em terra, mostrando os tiros que derrubavam as pessoas. Há um comunicado do ministro da Defesa israelense, Yoav Galant, admitindo que os disparos foram de suas tropas (sempre com uma justificativa bizarra e inacreditável). Por que raios alguém produz um título que culpa o Hamas, ou então responsabiliza uma “confusão”, para atribuir isso a um incidente deliberado, dantesco e mortífero que tirou a vida de mais de uma centena de inocentes famintos?
O viralatismo cego e sem limites dos grandes grupos da mídia hegemônica brasileira já ultrapassou todos os limites da compreensão. Por que um jornal como o The New York Times, que também é um grande negócio e sempre se colocou ao lado do lobby pró-Israel, simplesmente noticia o que acontece, e a Folha e a Globo não? Qual é a conexão direta com os interesses israelenses? Ok, muitos dirão que é a subserviência aos interesses dos EUA que por consequência conecta essas companhias de mídia a um alinhamento automático aos interesses de Tel Aviv. Mas tal tese fica pelo caminho quando percebemos que tanto a imprensa norte-americana quanto o governo dos EUA, na pessoa do presidente Joe Biden, já estão saturados de tanta brutalidade infundada e flagrante por parte de Israel. Não há santos nessa história, mas até a Casa Branca já percebeu que Benjamin Netanyahu perdeu a mão completamente e está promovendo um genocídio.
Por fim, a proposta aqui não é encontrar uma resposta para esse posicionamento nauseabundo das redações da mídia corporativa brasileira, mas sim deixar sem roupa um setor que se jacta de ser o bastião da verdade e da moralidade quando, para ser franco e educado, impõe uma distorção da realidade para suas audiências sem sequer confessar quais interesses estão por trás de uma postura tão vergonhosa como essa.