A fala do presidente Lula ao deixar a capital da Etiópia, Adis Abeba, no dia 18 de fevereiro, onde participou da cúpula da União Africana, que o genocídio na região palestina só encontra um precedente na História do mundo: "quando Hitler resolveu matar judeus", reverberou mundo afora e trouxe à tona debates sobre os horrores do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial.
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Mas o período pós-Guerra também foi marcado por violência, excessos e contradições por parte dos vencedores. Como, por exemplo, o processo de purga legal, Épuration légale, deflagrado na França após a retirada das tropas alemãs que perdurou de 1943 a 1946.
Inúmeras mulheres acusadas de "colaboração horizontal" - relacionamento íntimo ou sexual - com militares alemães durante a Segunda Guerra Mundial sofreram humilhações públicas e violências simbólicas e físicas.
Elas eram submetidas a um tratamento degradante que incluía tosquiamento, marcação do corpo com símbolos nazistas, como a suástica, pintados ou mesmo tatuados em seus corpos, como uma forma de estigma permanente - e, apenas depois, detenção e julgamento, quando havia.
Casos de "colaboração horizontal" muitas vezes não chegavam a tribunais formais, sendo tratados de maneira mais informal e sumária. Justiçamento.
A punição mais simbólica e visualmente chocante foi raspar os cabelos para amputar nessas mulheres um símbolo de feminilidade, marcá-las como colaboradoras do inimigo e despojá-las de sua dignidade e identidade feminina.
Ficção e realidade mostram que mulheres eram alvos fáceis
Esses episódios misóginos são retratados pela série The New Look, na Apple TV, que conta a história do estilista francês Christian Dior (1905-1957).
O quarto episódio do programa, que foi ao ar nesta semana, mostra uma das histórias que ilustra essa misoginia latente: a de Arletty, nome artístico de Léonie Marie Julie Bathiat (1898- 1992).
A icônica atriz francesa foi detida em 1945 devido ao seu relacionamento durante a guerra com Hans-Jürgen Soehring (1908-1960), um oficial da Luftwaffe, a força aérea alemã, durante a ocupação da França.
Durante sua prisão, segundo os registros oficiais, ela fez uma declaração que deixou às claras seu espírito indomável diante das graves acusações de traição. "Meu coração é francês, mas meu traseiro é internacional".
Na série, essa fala aparece em outro contexto, durante um diálogo entre a atriz, vivida por Joséphine de La Baume, e Coco Chanel (1883-1971), interpretada por Juliette Binoche.
Outro descompasso entre a série e os registros históricos está relacionado ao tipo de tratamento dispensado à Arletty. No programa exibido na plataforma de streaming, ela é uma das cercas de 20 mil a 30 mil mulheres que foram vítimas de humilhação pública na França que tiveram a cabeça raspada.
Na vida real, conforme relato de James Lord (1922- 2009), um escritor estadunidense autor de vários livros aclamados pela crítica, entre os quais uma biografia de Pablo Picasso, Arletty recebeu um tratamento diferenciado do conferido às mulheres acusadas de "colaboração horizontal".
Em vez da humilhação pública enfrentada por muitas mulheres, incluindo ter a cabeça raspada e ser marcada com suásticas, Arletty foi confinada a um castelo privado, onde cumpriu a maior parte de sua sentença de dezoito meses.
Nessa mesma circunstância, uma cena da série mostra Chanel horrorizada com o desfile de mulheres acusadas de traição pelas ruas de Paris. Ela comenta que só viu mulheres sofrerem esse tratamento degradante.
Humilhações públicas reservadas às mulheres pobres
Embora homens acusados de traição também tenham sido alvo da purga legal, atos de humilhação pública foram, em grande maioria, reservado às mulheres. Para cidadãos do sexo masculino sujeitos a escrachos públicos, o tratamento era desfile pelas ruas, mas sem raspar os cabelos ou marcar seus corpos.
A motivação que levou muitas dessas mulheres às chamadas "colaborações horizontais" com os nazistas era complexa e não necessariamente motivadas por simpatia ao inimigo. Algumas mulheres envolveram-se com soldados alemães por amor, outras por necessidade ou sobrevivência, como acesso a alimentos ou proteção.
O tratamento das mulheres acusadas de "colaboração horizontal" evidencia um forte viés de gênero, no qual as mulheres eram mais visivelmente punidas por supostas traições, enquanto muitos homens que colaboraram de formas mais significativas e materiais com os ocupantes enfrentaram menos retribuição pública.
Vergonha histórica
Os episódios de tosquiamentos de mulheres são um assunto controverso na história da França pós-guerra. Alguns os veem como uma manifestação necessária de justiça popular; outros, como um episódio vergonhoso de injustiça e misoginia, onde a punição foi desproporcional e, muitas vezes, injustificada.
As mulheres tosquiadas, les femmes tondues, eram denunciadas muitas vezes por vizinhos ou colaboradores nazistas que buscavam desviar a atenção de suas próprias traições.
Entre as vítimas, muitas eram prostitutas, que não faziam distinção de nacionalidade em seu ofício, atendendo tanto clientes franceses quanto alemães.
Durante a Segunda Guerra Mundial, muitas mulheres encontraram-se em situações desesperadoras, especialmente aquelas cujos maridos foram capturados e feitos prisioneiros de guerra pelos alemães.
Sem recursos para sustentar suas famílias, algumas recorreram a relações sexuais com soldados alemães em troca de alimentos para si mesmas e seus filhos.
Prática misógina se alastrou pela Europa
Esta realidade não se restringiu a um único país, refletindo uma trágica faceta da guerra que afetou diversas nações.
Na Noruega, por exemplo, aproximadamente cinco mil mulheres que tiveram filhos com pais alemães enfrentaram severas consequências após o conflito, sendo condenadas a até um ano e meio de trabalho forçado.
Essas crianças foram encaminhadas para sanatórios e, em alguns casos, usadas como cobaias em experimentos médicos, revelando uma camada perturbadora de abuso e exploração decorrente do pós-guerra.
Violência patriótica e viril
O historiador francês Fabrice Virgili analisa esses atos de repressão contra as mulheres como manifestações de "violência patriótica e viril", interpretando-os como uma forma de punição masculina carregada de conotações sexuais.
Esta tendência punitiva, no entanto, não foi um fenômeno isolado da Segunda Guerra Mundial. Virgili aponta para práticas similares pelos fascistas partidários de Francisco Franco, ditador militar espanhol, contra mulheres republicanas na Espanha, sugerindo um padrão recorrente de violência contra mulheres em contextos de conflito.
Durante a Guerra Civil e a ditadura, o castigo às mulheres foi duplo. Por serem "vermelhas" (de esquerda) e por serem "liberadas". A ditadura exigiu das mulheres um excesso de virtude que encarnasse um modelo de decência e castidade que limpasse a degradação moral republicana.
As mulheres sofreram violência sexual, torturas, o raspado e purgas com óleo de rícino por uma dupla razão. Por um lado, por desafiarem o âmbito doméstico ao qual eram relegadas, e, por outro, por serem familiares de homens ideologicamente contrários ao regime.
Essas histórias de injustiças e abusos contra mulheres em tempos de guerra ressaltam a necessidade de reconhecer e confrontar os horrores que transcendem os campos de batalha, afetando vidas de maneiras profundamente pessoais e devastadoras.
Violência de gênero em guerras persiste no século 21
Em plena era da informação, a violência de gênero, especialmente em cenários de conflitos armados, continua a ser uma realidade brutal e muitas vezes negligenciada.
Apesar da ampla disseminação de notícias e dados, as agressões sofridas por mulheres e meninas nesses contextos permanecem subestimadas e sem a devida atenção global.
Durante e após os confrontos armados, o número de lesões e traumas sofridos por mulheres e meninas é alarmante, expondo-as a riscos acrescidos de violência.
De forma preocupante, a violência sexual tem sido empregada como tática de guerra em diversos conflitos contemporâneos, evidenciando uma cruel estratégia de intimidação e dominação.
Segundo o Conselho de Segurança das Nações Unidas, as mulheres constituem a grande maioria das vítimas em situa??ões de guerra, sofrendo drasticamente com os impactos dos combates.
Tais violências, quando perpetradas em contextos de conflitos armados, sejam eles internacionais ou não, são consideradas violações graves do Direito Internacional Humanitário, que estabelece a obrigatoriedade de todas as partes envolvidas em conflitos armados de proibir expressamente a violência sexual.
Os conflitos armados e outras formas de violência não afetam somente mulheres e meninas, mas também homens, meninos e outros grupos, cada um de maneira distinta. A complexidade dessas situações exige uma análise aprofundada e uma resposta multifacetada que enfatize a necessidade urgente de proteção e suporte às vítimas.
A comunidade internacional enfrenta o desafio de não apenas condenar, mas também de tomar medidas concretas para erradicar a violência de gênero em cenários de guerra, garantindo justiça e reparação às vítimas.
A luta contra essa violência sistêmica é crucial para a construção de um futuro mais seguro e igualitário para todos, independentemente do gênero.
O novo visual pós-guerra
A trama central da série da Apple TV é a trajetória de Dior. Na história da moda, o que aconteceu após 12 de fevereiro de 1947 em Paris é amplamente documentado. Naquele dia, esse outro gênio apresentou sua primeira coleção solo, marcando o início do chamado "New Look" (ou "o novo visual"), que reintroduziu a feminilidade volumosa após anos de conflitos e escassez.
Contudo, como Dior havia chegado até esse ponto, destacando que a moda havia resistido? The New Look, que estreou nesta semana na Apple TV+ com Ben Mendelsohn no papel principal, explora não apenas o percurso profissional, mas principalmente o percurso pessoal do estilista francês durante a Segunda Guerra Mundial, examinando como isso influenciou seu processo criativo.
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