NATAL

A idiossubjetivação do Papai Noel – Por Raphael Fagundes

A longa trajetória do Natal e de sua figura mais icônica, o Papai Noel, nos mostra como o neoliberalismo conseguiu apoderar-se de tudo

Imagem Ilustrativa.Créditos: Agência Brasil/Arquivo
Escrito en OPINIÃO el

O Natal é uma festa mais moderna que tradicional, embora sua invenção tenha sido no ocaso do mundo antigo. Isso porque há uma variação de usos do Natal e da sua principal personagem, o Papai Noel, que comprova a flexibilidade de tal celebração.

De acordo com G. J. Whitrow, “a primeira menção do dia de Natal, ao que saibamos, apareceu no calendário romano para o ano 354”.[1] 25 de dezembro já era a data central do inverno, pois havia a festa pagã do solstício, “dia mais curto do ano, após o qual o sol começa a reaparecer com maior força e duração”.[2]

A Igreja Católica fez a associação entre Cristo e o Sol e, o “antigo costume de trocar presentes naquele momento para estimular a fertilidade, foi prolongado pelo cristianismo, que o justifica como comemoração do nascimento do Deus encarnado e como imitação do gesto dos magos que o presentearam”.[3]

É curioso que, durante a Idade Média, não havia o costume de comemorar o nascimento. Comemorava-se o morre natalis, isto é, o aniversário de morte. As únicas natividades comemoradas eram: a de Cristo (24 de dezembro), a da Virgem Maria (8 de setembro) e a de João Batista (24 de junho). Santo Agostinho se opôs à prática do aniversário por causa do pecado original. Mais importante era o dia do batismo, capaz de lavar a carne pecadora.[4]

É em relação com os mortos que Claude Levi-Strauss explica a prática de trocar presentes no Natal. “O progresso do outono, do início do solstício, que marca a recuperação da luz e da vida, é assim acompanhada, no plano ritual, por um procedimento dialético, cujas principais etapas são: a volta dos mortos, sua conduta de ameaça e de perseguição, o estabelecimento de um modus vivendi com os vivos por meio de troca de serviços e presentes - finalmente o triunfo da vida, quando, no Natal, os mortos carregados de presentes abandonam os vivos para deixar em paz até o outono seguinte”. É uma prática que se estabelece desde o início de novembro com o Halloween até o início de janeiro com o Réveillon, quando os eslavos e escandinavos ofereciam comida aos mortos.[5]

Ou seja, o costume de trocar presentes no Natal não foi uma invenção capitalista. Todavia, assim como a Igreja se aproveitou de tal prática para disseminar a fé católica entre os pagãos, o capitalismo fez o mesmo para disseminar a fé capitalista entre os cristãos.

Deste modo, o Papai Noel foi o primeiro personagem fictício usado em propagandas. Desde cigarros a bebidas, e com a Lei Seca nos EUA, se tornou garoto-propaganda da Coca-Cola. Até mesmo grupos de esquerda fizeram uso da imagem do bom velhinho. De acordo com Gerry Bowler, “o movimento socialista da escola dominical, que frequentemente encena peças para transmitir a sua mensagem, montou em Milwaukee ‘A greve do Papai Noel’”.[6] Ativistas vestidos de Papai Noel e dois de seus duendes “foram presos por terem entrado numa confeitaria de Toronto para protestar contra a fome”.[7]

A imagem do Papai Noel era pintada nas bombas lançadas pelos aliados nas cidades nazistas e, após a Guerra, ele entra na Europa na valise do Plano Marshall. O que levou ao protesto relatado por Levi-Strauss em 1951: “Dijon, 24 de dezembro. Papai Noel foi enforcado ontem à tarde nas grades da catedral de Dijon e publicamente queimado no adro. A espetacular execução se deu na presença de várias centenas de crianças de patronatos e foi decidida com a concordância do clero, que condenou Papai Noel como usurpador e herético, acusando-o de paganizar a festa de Natal e de nela se ter instalado como um intruso que ocupa espaço cada vez maior”, relata a notícia publicada no artigo do antropólogo francês intitulado “Papai Noel supliciado”.[8]

Não há dúvidas de que a forma que comemoramos o Natal é uma invenção estadunidense. E, no mundo capitalista, o maior promotor do Natal deixou de ser a Igreja para se tornar os shopping centers. Diversos autores chegaram à conclusão de que “o Natal parece ser mais um ‘festival’ de presentes do que uma festa com características espirituais”.[9] E “muitas pessoas acreditam que o Natal só sobrevive porque ele representa um motivo para aqueles que não celebram a data como uma festa religiosa”.[10]

Mas não somente isso se alterou. O Papai Noel é uma figura inventada na sociedade da disciplina. “O momento histórico das disciplinas”, destaca Foucault, “é o momento em que nasceu uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente”.[11] Martinho Lutero dizia que as crianças só deveriam receber presentes no Natal se jejuassem e rezassem corretamente durante o ano, “mas se não rezam, elas não ganham nada, ou então ganham uma vara e maçãs de cavalo”.[12] Em 1821, “o Papai Noel ainda era um agente onipresente das forças didáticas e um aliado da criação severa”.[13]

A questão é que não estamos mais na sociedade da disciplina. Como mostrou Gilles Deleuze, “as disciplinas, por sua vez, também conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se instalavam lentamente e que se precipitaram depois da Segunda Guerra Mundial: sociedades disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser”.[14]

As instituições criadas no período da sociedade da disciplina, como a escola, a indústria, o hospital, o exército, a prisão etc, “estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares”.[15]

Mas o filósofo Byung-Chul Han é mais preciso na sua definição do mundo atual. A lógica de dominação se altera no que ele chama de sociedade de informação. “O sujeito submisso do regime de informação não é nem dócil, nem obediente. Ao contrário, supõe-se livre, autêntico e criativo”.[16] Esse regime “se garante sem uma coação disciplinar”. As pessoas se expõem, geram dados sobre si mesmas, não precisam mais ser vigiadas. Em oposição às técnicas do poder do regime disciplinar, as técnicas de poder neoliberais, “não trabalham com a coação e interdições, mas com estímulos positivos”.[17]

Assim o Papai Noel vai se enquadrando na subjetividade neoliberal em que o castigo não é mais um instrumento de dominação. Tal figura fictícia teve o seu significado esvaziado e passou a representar um símbolo para aquecer as vendas do fim de ano. Ele se adapta a lógica neoliberal de idiossubjetivação na qual os signos devem ter o significado mais simples possível. Essa nova subjetividade procura demonizar o pensamento complexo. Ocorre, como explica Rubens Casara, um “quadro de empobrecimento subjetivo e de valorização econômica da ignorância correlato à demonização da educação, da cultura e do pensamento reflexivo (percebidos como atividades degeneradas e ideológicas)”. Deste modo, “as mercadorias (e a informação útil ao neoliberalismo) são, por sua vez, apresentadas como meras positividades, como aquilo que se deve desejar e que tem por destinação agradar e ser útil”.[18]

Todos os elementos que havia na figura do Papai Noel, que não estimulavam a lógica do mercado, foram arrancados e nada foi colocado no lugar. Assim ele passou a ter uma função simples, objetiva, uma razão para comprarmos, em muitos casos, aquilo que não necessitamos.

A longa trajetória do Natal e de sua figura mais icônica, o Papai Noel, nos mostra como o neoliberalismo conseguiu apoderar-se de tudo, transformando o significado das coisas para direcionar todos os nossos esforços para um único fim, consumir. Esse totalitarismo neoliberal, pior do que as ditaduras totalitaristas da era da disciplina, precisa ser compreendido e debatido nas mais diversas manifestações da sociedade, desde a política até as meras atividades do cotidiano. Nas festas, no entretenimento, é onde mais se manifesta essa ação neoliberal de manipular as subjetividades. “O entretenimento é o mandamento supremo”, explica Han. Lógico que a opressão física continua sendo usada, principalmente pelo Estado punitivo sobre as populações mais pobres. No entanto, cada vez mais, as novas técnicas de controle vêm substituindo o uso da dor e da tortura como meios de dominação, para dedicar um alto investimento em entretenimento e divertimento.

 

[1] WHITROW, G. J. O tempo na História. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p. 85.

[2] JÚNIOR, H. F. A Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 136.

[3] Id., p. 137.

[4] SCHMITT, Jean-Claude. L´invention de l´anniversaire. Annales HSS, juillet-août, 2007, p. 811.

[5] LEVI-STRAUSS, C. Papai Noel supliciado. Alceu, v.4, N. 7, p. 5-18, jul/dez, 2003, p. 16.

[6] BOWLER, G. Papai Noel: uma biografia. São Paulo: Planeta, 2007, p. 83.

[7] Id., p. 84.

[8] LEVI-STRAUSS, p. 5-6.

[9] BATINGA, G; PINTO, M. e RESENDE, S. Natal, consumo e materialismo: uma análise discursiva de cartas infantis de Natal. Revista Brasileira de Gestão de Negócios, São Paulo, v. 19, N. 66, p. 557-573, out/dez. 2017, p. 562.

[10] Id., p. 563.

[11] FOUCAULT, M. Vigiar e punir. 42 Ed. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 135.

[12] BOWLER, p. 30.

[13] Id., p. 45.

[14] DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 219-220.

[15] Id., p. 220.

[16] HAN, B-C. Infocracia. Petrópolis: Vozes, 2022, p. 9.

[17] Id., p. 17.

[18] CASARA, R. A construção do idiota. Rio de Janeiro: Da Vinci, 2024, p. 41.

[19] HAN, p. 32.

*Este artigo não representa, necessariamente, a opinião da Fórum.

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