Na exibição do clássico “Garotos de programa” (dir. Gus Van Sant, 1991) pelo “XV Janela Internacional de Cinema do Recife”, peguei-me encantado pela inventividade de se apropriar de um texto como “Henrique IV”, peça Shakespeariana sobre a juventude de um príncipe, e os caminhos pouco nobres que ele percorre antes de se tornar rei, para produzir uma obra sobre a juventude interiorana nos EUA dos anos 1990 e sobre um tipo de tragédia e delinquência implicadas nela. A beleza das cenas que mais se aproximam do texto da peça – com William Richert interpretando um Falstaff entre tavernas e estalagens, comandando o príncipe Keanu Reeves sobre os meandros da vida – é potencializada pelas imagens externas feitas em locação nas estradas desérticas de Idaho, que parecem levar mesmo para um lugar entre tempos ou fora da linearidade dos tempos.
O manejo formal da intertextualidade e da relação com o tempo histórico também está bastante presente em “Grand Tour” (dir. Miguel Gomes, 2024), filme português que venceu o prêmio de direção no “Festival de Cannes” deste ano. Aqui, Edward (Gonçalo Waddington), um homem inglês trabalhando na Birmânia, foge de Molly (Crista Alfaiate), sua noiva há 7 anos, quando ela chega a Rangoon de Londres esperando enfim se casar com ele. Enquanto ele viaja entre diferentes países do leste asiático à procura de um lugar em que ela não possa alcançá-lo, Molly o segue, a princípio com propósito claro, depois quase instintivamente, acidentalmente e com muito esforço, encontrando rastros deixados pelo noivo.
“Grand Tour” é dividido em dois atos maiores: o da fuga de Edward e o da procura de Molly, quando vemos repetir cenários, cidades e países que já vimos pela perspectiva do outro personagem. Além disso, o filme recorre a uma série de devaneios temporais, com imagens documentais do presente feitas em locação nas diferentes cidades e países por onde Edward e Molly passam sendo acompanhadas por narrações em off relatando as desventuras dos personagens na década de 1910, narrações realizadas na língua dos seis narradores, o birmanês (na voz de Tin Shine Aung), vietnamita (Duc Hoang), tailandês (Mod Kamonpan), japonês (Takashi Sugimoto), filipino (Mabille Tamala) e mandarim (Yaoting Zhang).
Esse modo de encenação das diferenças culturais, espaciais, de linguagem e de tempo pelo filme cria um efeito novo e bastante interessante no que “Grand Tour” elabora uma pluralidade e um dialogismo radicais para o seu modo de lidar com a alteridade. Enquanto os viajantes ingleses, falando português, percorrem esses países de tensiva relação colonial com as metrópoles europeias no início do século XX, a história dessas duas figuras é relatada em idiomas locais e atravessada por um imaginário pós-colonial. As muitas cenas que se dirigem a contemplar práticas performáticas e culturais desses países não sustentam também qualquer ideia de exotismo orientalista, mas um envolvimento formal com outros modos expressivos além do cinema clássico a que o filme (como outros de Miguel Gomes) referencia.
A força política dessa escolha cênica deve ser destacada, porque ela contradiz o oriental “dado como fixo, estável, precisando de investigação, precisando até mesmo de conhecimento sobre si mesmo”, como escreve Edward Said, em seu fundamental livro “Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente”, sobre o papel científico que o Ocidente concedeu a si mesmo na sua leitura do Oriente. Rigorosamente, “Grand Tour” encena as línguas e performances locais como domínios de conhecimento, um conhecimento sobre si que não é acessível aos personagens ingleses (a narração nos diz, por exemplo, que Edward se equivoca de achar que sabe as regras do mahjong, enquanto vemos, em imagens do presente, uma mesa de jogadores em atividade em Xangai) e um conhecimento também sobre os ingleses, como se fossem autores que conhecem a totalidade de seus personagens em um romance.
Em entrevistas, Miguel Gomes diz ter se inspirado em um livro de viagens que eventualmente fazia inserções ficcionais. É especialmente intrigante como ele de certo modo adota também a forma desses livros, com pequenos eventos, práticas, visitas, paisagens e pontos culturais que poderiam ser interessantes aos olhos de um turista sendo contemplados pela câmera. O que torna essa escolha mais singular é que ela está distinta da diegese dos principais personagens, que são, por acaso, também turistas, mas não é ao seu turismo que o filme encena essas passagens, mas ao nosso, ao papel do espectador como turista dentro desse filme de viagens com inserções ficcionais.
Ter revisto “Garotos de programa” e visto “Grand tour” em dias seguidos me apresenta a importância de uma curadoria bem desenhada em um festival de cinema. O emprego da intertextualidade pelos dois filmes quebra a caixa de transparência do cinema (da nossa realidade, para uma outra, unívoca e bem resolvida), revelando uma difusão de vozes, textos, modos de encenar, perspectivas audiovisuais, tempos e espaços. Cabe ao potencial criativo do audiovisual levar Shakespeare para essa “América profunda” de jovens prostitutos ansiosos pelo contato do amor; e também articular uma narrativa de viagem em seis vozes, em diferentes linguagens idiomáticas, audiovisuais e expressivas. O cinema se redescobre sempre além do cinema.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.