Considere a seguinte imagem: uma mulher travesti chamada Rio (Rafa Barbosa) sai de um carro de som no interior do Ceará com um longo vestido vermelho e celebra ao microfone o amor de um casal, na homenagem encomendada por um jovem marido à sua esposa. Essa é a primeira cena de “Tiramisù” (dir. Leônidas Oliveira, 2024), curta-metragem em competição no “XV Janela Internacional de Cinema do Recife”. Como a cena sugere, esse é um filme sobre amor. O amor declamado, em nome de terceiros, por Rio vestindo longo, o amor de Evângelo (Wallyson Nascimento) por Rio enquanto a ensina a andar de bicicleta, o amor de Rio por Cláudia (Flávia Morays), sua amiga que concorre a um cargo legislativo na cidade.
Sendo um filme sobre amor – e a maneira como o amor atravessa a formação de uma comunidade –, “Tiramisù” se permite recorrer a alguns clichês na encenação desse trânsito de afetos. Um deles me marcou especialmente. Depois de ser fotografada para a sua campanha municipal, Cláudia entrega seu “santinho” a Rio em uma cena externa. A câmera trata esse gesto com uma imensa e estranha solenidade. Estranha apenas pelo excesso melodramático do gesto. Em silêncio, Cláudia mostra o santinho a Rio, que recebe o pequeno papel como um objeto aurático, olhando então a amiga profundamente nos olhos.
Aqui vale uma defesa do clichê e do melodrama – assim como da utilização de ambos pelo filme. O redimensionamento do gesto do “santinho” eleva também todos os outros sonhos, desejos e sabores do filme a uma afirmação da maior importância da personagem e das suas relações. É pelo clichê eventualmente melodramático que o filme as inscreve no espaço interiorano daquela cidade, celebra para cada personagem um futuro lindo. A imensidão dada ao gesto de uma candidata trans à Câmara Municipal de uma pequena cidade mostrando o “santinho” à amiga demanda que nós, como espectadores, compartilhemos da grandeza da promessa contida nele; e que acreditemos, junto ao filme, na possibilidade de tudo o que esse gesto promete.
Achei necessário passar primeiro por “Tiramisù” para falar de outro filme exibido no mesmo festival: a obra do momento no cinema nacional, “Ainda estou aqui” (dir. Walter Salles, 2024). O filme, que foi escolhido para representar o Brasil na competição pela indicação ao Oscar de Filme Internacional (e que representa nossas maiores chances desde a temporada 2008-2009), também sustenta um desejo manifesto de compartilhar com o espectador uma vontade política. Diferentemente de “Tiramisù”, no entanto, ele não recorre ao gestual melodramático para construir essa crença comum entre o sonho do personagem e o sonho do espectador.
“Ainda estou aqui”, como se sabe, é uma adaptação do romance biográfico de Marcelo Rubens Paiva. No livro, como no filme, é a mãe do autor que ocupa o centro da narrativa. Eunice Paiva (interpretada por Fernanda Torres) é casada com o engenheiro e ex-deputado federal Rubens Paiva (Selton Mello), que teve seu mandato cassado pela ditadura militar em 1964 e que foi levado de sua casa por militares em 1971 para um depoimento do qual ele nunca retornou, sendo um dos 434 desaparecidos e assassinados políticos vitimados pelo regime militar brasileiro. Eunice é presa depois do marido e passa uma semana na prisão, voltando para casa, e para seus cinco filhos, para esperar o retorno de Rubens.
A força motriz da história é o que guia o filme. Ele começa com imagens da vida urbana de classe média no Rio de Janeiro no início dos anos 1970. A ditadura é uma espécie de pano de fundo ou sombra sobre a vida dos personagens. Com o acirramento da violência pelo governo militar desde 1968, alguns amigos de Rubens e Eunice deixam o país, levando a filha mais velha do casal, Vera (Valentina Herszage), com eles. A intervenção da história na vida familiar só se radicaliza quando um grupo de militares ocupa a casa de Eunice e conduz Rubens para a prisão e morte. Mesmo quando isso acontece, o roteiro do filme vai seguindo a linha cronológica da história como a conhecemos: Eunice e seus filhos deixam o Rio para voltar para São Paulo; o tempo passa, a família conquista o atestado de óbito em 1996, e, enfim, uma Eunice mais velha (Fernanda Montenegro), vivendo com a Doença de Alzheimer, contempla uma reportagem sobre a ditadura militar na televisão.
“Ainda estou aqui” busca evidentemente se colocar como um filme sobre memória. Esse é o fenômeno motivador do livro, a ponte criada em cena entre a ditadura e a doença de Eunice e o seu apelo político maior, que as investigações realizadas pela Comissão da Verdade e divulgadas no início da década passada levem à responsabilização dos agentes da ditadura pelos crimes cometidos e que, assim, um projeto político de memória em torno da violência de Estado e das vítimas feitas por ela se consolide no horizonte político brasileiro. De fato, a necessidade política disso é urgente, e o filme faz um bom trabalho em sua reivindicação objetiva e clara no contexto atual de um governo de esquerda que, sob justificativas pífias, insuficientes e deficitárias, escolheu não celebrar a memória do golpe militar em seu aniversário de 60 anos.
Ao mesmo tempo, para um filme tão interessado nesse grande tema da memória, ele nunca se afasta da fruição e cronologia da história oficial. O seu encadeamento de eventos segue uma lógica bastante desinteressante de causas, consequências e pontos de virada. A história, como na reportagem televisiva vista por Eunice, aparece já resolvida e mapeada. Parece não ocorrer ao filme como a memória age como manifestação desestabilizadora e mobilizadora da história. Outra possibilidade é que o texto do filme tenha sido tão cuidadoso no tratamento da cronologia familiar que não se permitiu qualquer envolvimento criativo com a memória. Cada evento é pontuado com uma clareza desconcertante. Como se, no lugar de seguir o fio incerto da memória, buscasse se construir em torno de ocorrências testadas e confirmadas, com inícios, meios e fins perfeitamente estabelecidos.
A partir dessa escolha, sobra pouco espaço para um trabalho formal interessante. A espera de Eunice pelo marido é encenada por uma sequência de acontecimentos de funções bem definidas para a personagem e o seu papel histórico. A intensidade afetiva da espera, do trauma ou da dúvida nunca é realmente permitida à personagem, porque essa acentuação (da forma audiovisual, do corpo em cena, do excesso do sentimento) ameaça sempre romper com a ordenação dos fatos cronológicos. É por isso que não há, no sentimento político de “Ainda estou aqui”, qualquer espaço para o melodrama.
É um resultado compreensível, mas ainda um tanto surpreendente. Walter Salles não pode se dizer uma figura estranha ao melodrama. A força melodramática está entranhada em seu filme mais bem-sucedido, “Central do Brasil” (1998), e oferece a ele seus melhores momentos, com um uso dominante da trilha sonora dando veemência emocional aos encontros e desencontros através das estradas brasileiras. Um filme exacerbadamente humanista, um cinema de lágrimas que transborda dos excessos do texto (impregnados na função que o lirismo das cartas assume através do filme) e da forma audiovisual. “Terra estrangeira”, para citar outro título mais canônico de sua filmografia, conclui com uma personagem (a de Fernanda Torres) segurando seu amor no colo enquanto, soluçante, canta a música “Vapor Barato”.
Se a Fernanda Torres de “Terra estrangeira” canta emocionada, a de “Ainda estou aqui” eventualmente dança para preencher um espaço cronológico demandado pela narrativa do filme. Sua dança, em uma festa de família, significa a felicidade do casal antes da tragédia, mas ela não realmente expressa algo além de sua função. O filme não se envolve com o ímpeto corporal e emocional em momento algum, ele apenas segue a sua ordenação consolidada ao destino final do presente. Enquanto a entrega do santinho em “Tiramisù” é dimensionado como um gigantesco sonho que desponta do emaranhado vida/política dessas personagens, restam à reivindicação pela memória da ditadura em “Ainda estou aqui” as frias cartelas relatando o destino dos personagens no fim do filme.
Concluo dizendo que escrevo este texto na manhã em que se confirma a vitória de Donald Trump na eleição presidencial dos Estados Unidos. Sendo reconhecido, como sempre deve ser feito, que a alternativa autoproclamada antifascista desse pleito é tanto cúmplice como perpretadora do genocídio em andamento na Palestina, há ainda assim como consequência do resultado eleitoral uma inquietação geral com os rumos cronológicos da história chegando ao fim de seus trilhos. Acredito que os excessoshmelodramáticos da imaginação – e a impetuosidade lacrimosa da ficção – são importantes para desorganizar essa História de trilhos certos, de causas e consequências já acertadas, porque acredito que a utopia que eles sugerem sustenta a capacidade de mudar nossos rumos e encontrar outros destinos políticos para além daqueles mapeados por analistas de telejornais. Fico, enfim, com o vigor do clichê e o ímpeto do sonho de “Tiramisù”.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.