CRÔNICA

Labirinto – Por Luis Cosme Pinto

As desventuras de Tomé, um construtor perdido dentro de seu próprio labirinto

Imagem ilustrativa.Um pedreiro solitário numa obraCréditos: Pixabay Free
Escrito en OPINIÃO el

“É meio a meio. Duas de cimento e duas de areia. Água até cobrir e aí o cabra mexe com paciência, sempre pro mesmo lado, que nem bolo.” Esta é a receita de Tomé para a massa homogênea que sepulta buraco, aplaina piso, alisa quina, apruma teto. De minha parte, digo até que amansa gente.

O pedreiro Tomé é baiano de Irecê. Tem 4 filhas e sete netos. 60 anos, com corpo de 40, rosto de 70, olhar de 80. Já explico por quê.

Vive com a filha no bairro do Grajaú, vizinho de Interlagos. Se caminhar mais um tico, pisa em Diadema.

Para tocar a campainha às 9 horas aqui em casa, no centro, o Tomé levantou às 5. Pegou ônibus, trem e dois metrôs.

Como se diz nas profundezas da cidade: se você tomou seu café na padaria logo cedo, ou chegou na hora ao trabalho é porque alguém madrugou na periferia paulistana.

Alguém cozinhou. Alguém limpou. Alguém dirigiu, enquanto a burguesia roncava sob o edredon.

Tomé entrou às 9 e às 9:01 começou o trabalho.

Martelo e talhadeira a preparar o chão para receber o novo piso. Também raspou, passou a massa, pintou.

Quanta diferença daquela empreitada do primeiro semestre.

Uma piscina de pedras coloridas! Imensa e aquecida! Cento e sessenta mil litros de água. Quatro meses de trabalho na mansão de praia de um banqueiro.

Ele e quatro colegas. Pior que o serviço debaixo do sol, foi a folga. Logo a primeira.

Um sábado de céu limpo e os pedreiros, depois do esforço de segunda à sexta, ansiavam pela água fresca e salgada. Quem sabe “pegar um jacaré”?

Antes mesmo que molhassem os pés, um apito forte ecoou na pequena faixa de areia no litoral norte.

- A praia é só para moradores do condomínio. Intimou o segurança, com rispidez.

- E praia tem dono? Quis saber um dos pedreiros.

- Aqui tem e você não é convidado. Vaza! Retrucou o vigilante com a mão em cima da arma pendurada na cintura.

Tomé nunca sentiu tanta saudade da represa de Guarapiranga.

Outros trabalhadores do lugar, também proibidos de pisar na areia dos milionários, indicaram uma praia a alguns quilômetros dali.

Nessa outra maresia, Tomé e sua turma, se divertiram, tomaram cerveja e experimentaram algo desconhecido: camarões ao alho e óleo. Mastigaram bem devagar, dando valor supremo ao petisco de cinquenta reais a porção.

- Valeu a pena?

- Ô. 60 anos de vida e nunca tinha provado! A gente tava com o vale do primeiro pagamento e aproveitou.

Enquanto conversa, Tomé trabalha. Já trocou 15 lajotas. Então, pigarreia e abaixa a voz.

- A viagem foi boa, a piscina ficou linda, o patrão pagou direitinho e como a gente dormia lá e podia cozinhar, sobrou um bom dinheiro.

- Mas parece que você não gostou.

- Quando voltei, senti algo estranho. A Germana, minha segunda mulher, mãe de três das minhas quatro filhas, tava diferente, esquisita.

Tomé faz uma pausa, olha as 20 lajotas já assentadas e prossegue.

- Fui até o boteco jogar bilhar e um vizinho fez piada dizendo que eu tinha ficado muito tempo fora. Outro perguntou se eu ainda sabia o caminho de casa. Até que minha filha mais nova me contou: “enquanto você tava fazendo a piscina, mamãe começou a namorar o seu Amarildo lá do mercado.”

- Qual foi a sua reação?

- Queria morrer. Queria matar. Nunca senti tanta raiva e tristeza ao mesmo tempo. Fiquei andando da sala pra cozinha, perdido dentro da casa que eu mesmo fiz.

Tomé mira longe, bem longe. Olhos opacos de quem preferia não ver.

- Toda sexta-feira, quando a gente recebia o vale lá na obra da piscina, eu mandava um pix pra ela. Também guardei uma parte do pagamento para trocar a TV. A essa hora a Germana tava fazendo coisa que eu não quero nem pensar.

- Vocês conversaram?

- Não. Germana voltou num dia que eu não estava, levou as coisas dela e tá lá com o puto do Amarildo. Mandou um áudio e disse que quando eu me acalmar ela se explica.

- E você?

- Não respondi. Minha filha que mora comigo me disse para seguir em frente, que vai passar. Que tudo passa.

- O que você acha disso?

- Minha filha tem razão. A vida não é mesmo do jeito que a gente quer, moço.

Tomé prende um pano molhado no rodo e, com suavidade, espanta a poeira da obra. A mesma delicadeza com que mexeu massa, alisou parede e encaixou lajota. Engole o café bem adoçado e se despede, amanhã tem que acordar cedo.

*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.