ELEIÇÃO EUA E BRASIL

A derrota Biden/Kamala, uma advertência grave ao governo Lula e duas notas - por Mauro Lopes

Maria da Conceição Tavares deveria ser ouvida no Palácio do Planalto. Biden/Kamala confiaram nas suas estatísticas lustrosas. Como Lula tem feito. Mas o povo não come estatísticas. Nem engole receituário neoliberal

Trump e Lula.Créditos: Reprodução / Ag.Brasil
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“É a economia, idiota” - a famosa frase de James Carville, estrategista da campanha de Bill Clinton em 1992, ecoa até hoje como uma advertência aos partidos e candidatos em eleições. Outra frase deveria ser ouvida em todo o universo político planetário: “Ninguém come PIB, come alimentos”. Foi proferida aqui mesmo no Brasil em 2014, numa entrevista, por Maria da Conceição Tavares. Provavelmente a dupla Biden/Kamala não conhece a frase de uma das maiores protagonistas do pensamento econômico brasileiro. Azar deles. Lula com certeza conhece. Mas tem ignorado e poderá pagar o mesmo preço de seus parceiros estadunidenses.

A frase de Carville foi um mantra da campanha de Clinton em 1992, que a usou contra a suposição que se demonstrou completamente falsa de que o sucesso de George H. W. Bush na invasão do Iraque, um ano antes, seria garantia de uma vitória eleitoral. Clinton venceu com 45 milhões de votos contra 39 milhões de Bush, com 370 delegados contra 168 no colégio eleitoral. 

Mas não basta pensar “ECONOMIA” ao talante dos economistas acadêmicos ou dos espertos do mercado financeiro.

Conceição Tavares decretou que ninguém come estatísticas, o povo não frequenta os salões refrigerados de Washington ou Brasília. Quando proferiu sua frase, a economia brasileira havia colhido um crescimento de 2,3% em 2013 -um número bem próximo ao do crescimento do PIB em 2023 nos EUA (2,5%) e no Brasil (2,9%), que tanto orgulha o governo Biden e o governo Lula. Mas nem o povo lá nos States nem aqui no Brasil come 2,5% ou 2,9% -a refeição é feita aqui com arroz, feijão, bife, batata frita, lá com hamburger, “french fries”, pizza…

E a vida para os pobres, para os trabalhadores e trabalhadoras em geral está dura, muito dura, lá e cá, em que pese ambos os governos fazerem alarde de algumas das menores taxas de desemprego da história (4,3% nos EUA e 6,4% no Brasil), Empregos “de merda” (numa adaptação da expressão de David Graeber), de baixa remuneração, em condições e relações de trabalho degradantes que, a rigor, sequer podem ser considerados empregos -como o caso dos ambulantes que vendem capas para celular nas ruas dos centros urbanos. 

Trump falou aos trabalhadores sobre suas reais condições de vida; Kamala desfiou estatísticas. O governo Lula não se cansa de desfilar estatística e, cada uma, proclamar que o país estaria “fazendo o L”. As eleições municipais e a robusta vitória da extrema direita (leia aqui) já anteciparam que não está sendo bem assim.

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No mesmo dia da eleição nos EUA e da acachapante vitória de Trump, o governo Lula estava amarrando um pacotaço neoliberal para salvar o arcabouço fiscal (teto de gastos, como já admite o ministro Haddad).

É incrível que o governo tenha se enfiado numa armadilha sem precedentes. Todos os avisos dos economistas de esquerda foram ignorados e até ridicularizados desde o primeiro trimestre de 2023. Era óbvio, mas Carolina (Haddad) não viu, parafraseando Chico Buarque. Se o governo impôs uma camisa de força no crescimento do orçamento público limitando-o a um crescimento máximo de 2,5% acima da inflação e se havia despesas que não estavam limitadas ao teto de Haddad era evidente que elas esmagariam as despesas não obrigatórias. Alguns exemplos: o orçamento da Educação e Saúde, Previdência Social e programas como o do BPC (Benefício de Prestação Continuada), Bolsa Família (que não teve reajuste em 2024), seguro desemprego e abono salarial. Além do aumento real do salário mínimo, sempre alvejado pela burguesia e por Haddad. Como se vê, trata-se do orçamento dos pobres do país, pois o orçamento dos ricos, sobretudo o pagamento dos juros da dívida pública, seguem sem teto nem qualquer contingenciamento. 

A rigor, não é que Haddad não tenha visto, pois as equipes e altos funcionários da Fazenda desde março de 2023 faziam carga contra os orçamentos da Educação e Saúde de maneira aberta. Mas, agora, chegou a hora da verdade para o ministro e a Faria Lima: o arcabouço de Haddad-Lula exige radicalização para ficar de pé. A pressão do mercado é brutal, com uma sequência de ações especulativas na Bolsa e no preço dólar/real, além de uma fornada quase diária de reportagens, artigos e editoriais da mídia liberal.  

A pressão do mercado combinada com Haddad sobre o Planalto acabou colocando o governo de joelhos e espera-se o pacotaço para as próximas horas, com a provável edição de duas PECs e alguns projetos de lei. Há protestos públicos dos ministros Camilo Santana, Luiz Marinho e Carlos Lupi, mas o desfile haddadista está seguindo em frente.

O exemplo Biden/Kamala deveria soar como um alerta no Planalto. Um pacote de austeridade poderá corroer rapidamente a base de apoio popular do governo de Lula. E há o risco evidente de ter a extrema direita e parte do Centrão colocando-se contra o pacote neoliberal no Congresso, o que acarretaria um desgaste sem precedentes para o presidente. A extrema direita, animada pela vitória nas eleições municipais, entrou nesta quarta-feira (6) numa ofensiva agressiva, acentuada pela estrepitosa eleição de Trump. 

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O cenário se agrava na esfera internacional. Os dois eventos eleitos como os prioritários, as duas grandes apostas do governo Lula, sugando energias vitais de sua equipe, correm o risco de sofrer grandes abalos: o G20, cuja cúpula acontece nos dias 18 e 19 de novembro no Rio, e a COP30, daqui a um ano no Pará.

Imagine o governo dos EUA representado no Rio por um Joe Biden derrotado, combalido e sob fogo de Trump. Imagine a COP30 acontecendo sem a presença do governo dos EUA e, pior, sendo abertamente hostilizada por Trump.

Nessa hora, com a vitória de Trump, em que será retomada a ofensiva dos EUA contra o G20, a COP, a ONU e todas as iniciativas multilaterais, em que a agressão à Venezuela e Cuba serão radicalizadas, que lugar ocupou o governo Lula?

O Brasil tinha um lugar no mundo sob os governos do PT. Uma das peças-chave dos Brics, aliado de todas as horas da Venezuela e de Cuba, uma liderança do Sul Global. Neste Lula III, o governo brasileiro resolveu hostilizar o governo Maduro, e se afastar dos Brics. Corre o risco de ficar a ver navios. Hostilizado pelo governo de extrema direita dos EUA, que irá priorizar sua relação com Jair Bolsonaro e o bolsonarismo no Brasil, além de isolado e visto com desconfiança pelos Brics. 

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O governo Lula vive um momento crucial.

PS: para agravar as tendências do cenário brasileiro, o Copom anunciou, no final da tarde desta quarta (6) mais uma cacetada na taxa básica de juros, a Selic. Aumento de meio ponto percentual, para 11,25% ao ano. A decisão foi, mais uma vez, consensual, resultado da aliança entre o atual presidente do BC e seu sucessor. O aumento, como tem sido a cada reunião, foi abençoado pelo ministro da Fazenda. Algumas figuras do PT, mais uma vez, lançaram-se a público com críticas contundentes à decisão, escondendo do público que ela é fruto do acordo e da visão comum de Campos Neto e Galípolo. A nova taxa joga mais pressão para que o pacote de austeridade seja editado o quanto antes, sob ameaça de novas convulsões provocadas pelo consórcio Faria Lima-BC. 

 

* Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.