RESENHA

O realismo plástico de “Tudo que Imaginamos como Luz” – Por Cesar Castanha

O filme de Payal Kapadia foi o vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes deste ano

Cena de Tudo que imaginamos como luz.Créditos: Principale Validée/Divulgação
Escrito en OPINIÃO el

Em uma cena de “Tudo que imaginamos como luz” (dir. Payal Kapadia, 2024), um afogado é resgatado na praia. Prabha (Kani Kusruti), enfermeira, vai à frente do aglomerado de pessoas em torno do homem desacordado e o traz de volta com técnicas de socorro. Em um quarto com esse mesmo homem, na cena seguinte, Prabha e o desconhecido encenam um estranho dueto. Não mais afogado e enfermeira, agora eles são Ulisses e Penélope. O homem que parte para o mar, e a mulher que o espera com alguma hesitação, a reticência própria da espera.

O que a poderíamos entender como um elemento mágico nessa sequência é meramente o efeito de dois corpos em cena que acessam, à luz interiorizada do quarto, sob o efeito de um mistério que é próprio do cinema e da atuação em geral, a projeção de outras interioridades, outras existências que confundem tempos de memória e expectativas dos personagens. É um efeito que associo pessoalmente ao cinema recente do português Pedro Costa – ao menos desde de seu “Cavalo dinheiro” (2014) –, em que o corpo em cena oscila no intervalo entre o espaço e a lembrança. “Tudo que imaginamos como luz”, diferentemente de “Cavalo dinheiro”, não é construído em torno desses efeitos, mas aqui, nessa sobra mágica, eles dão outra dimensão ao filme e à sua protagonista.

O filme de Kapadia, vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes deste ano, segue no geral uma orientação narrativa bastante realista. A rotina de Prabha em Mumbai, uma mulher que perdeu a comunicação com seu marido, trabalhando na Alemanha, é intercalada pela de sua colega de apartamento e aprendiz de enfermagem, Anu (Divya Prabha), que namora secretamente um rapaz muçulmano (Hridhu Haroon), enquanto seu pai, em vão, envia-lhe retratos de pretendentes.

A sugestão realista dessa narrativa é, porém, confundida ou desestabilizada por uma forma que favorece uma série de efeitos plásticos de luz e iluminação, dando a essa Mumbai realista uma materialidade propriamente cinemática. Nas cenas da cidade, quando o filme faz uso de muitas externas noturnas, a multiplicidade de luzes das ruas – dos camelôs, lojas, meios de transporte –, junto ao movimento constante de transeuntes e de ritmos da vida urbana de uma das cidades mais populosas do mundo, produz, na encenação de Kapadia e no excelente trabalho de fotografia de Ranabir Das, um tipo muito sofisticado de hipersensibilidade e difusão luminosa nessa apresentação material do cenário. Aqui, o filme chega a se assemelhar aos impressionantes efeitos de visualidade conquistados por “Amores expressos” (dir. Wong Kar-Wai, 1994) ao filmar Hong Kong, mas retém outros dos efeitos de imagem que constituem o espaço deste, como a manipulação do movimento.

As duas comparações feitas neste texto, com os cinemas de Pedro Costa e Wong Kar-Wai, podem sugerir uma perspectiva de que “Tudo que imaginamos como luz” tem um experimentalismo bastante contido, nunca arriscando de fato a radicalidade formal dessas outras duas filmografias. E isso é verdade. Parece-me que a ambição de Kapadia não é de romper com a janela da transparência realista, mas de reelaborar a plasticidade de uma relação do cinema realista com a realidade social e também expandir a imaginação em torno de suas personagens, que não são impedidas de mergulharem nas fantasias e devaneios de suas interioridades.

Chega a ser impressionante a precisão com que Kapadia utiliza a linguagem que escolheu para colocar em cena a história dessas duas trabalhadoras. Em primeiro lugar, pela maneira como recorre a uma iluminação cinemática, recusando qualquer tentação de naturalismo. Quando as luzes da cidade cumprem seu papel na cena, há sempre um trabalho da encenação em torno delas, sustentando uma difícil e bem executada coesão formal entre exteriores e interiores, praia e mercado público, caverna e apartamento, hospital e loja de eletrônicos. Kapadia, assim, cumpre um tipo de promessa realizada no título, um tanto quanto demasiadamente literal, do filme. Excedendo-me um pouco na contrariedade que é permitida a um crítico, diria que há apenas uma lamentável restrição nessa ideia de “imaginar” a luz, especialmente em um filme em que, muito mais do que isso, a experimentamos de tantas formas.

“Tudo que imaginamos como luz” é parte da programação do XV Janela Internacional de Cinema do Recife, que ocorre até o dia 8 de novembro.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.

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