Em uma análise estritamente contextual, é difícil negar a posição de “Rivais” (dir. Luca Guadagnino) como um dos principais fenômenos do cinema em 2024. Um drama esportivo (publicizado principalmente como um drama romântico-sensual) que não foi baseado em nenhuma personalidade real, de orçamento estimado em 55 milhões de dólares, faturou globalmente quase 100 milhões de dólares. O número pode parecer pequeno diante da expectativa para que qualquer adaptação de super-herói gere uma bilheteria na casa do bilhão de dólares, mas tem se tornado uma raridade para dramas ficcionais sem elementos significativos de fantasia.
Os diversos artifícios audiovisuais empregados por “Rivais” foram amplamente observados pela crítica na ocasião do lançamento do filme nos cinemas, alguns meses atrás. Uma variedade de ângulos e escopos dos planos visuais, incluindo uma sequência muito comentada da partida de tênis filmada do que seria, a rigor, a “perspectiva da bola”, além da trilha sonora preponderante por boa parte dos momentos de intensidade do filme e a recorrente interrupção das imagens e do som pelas elipses da montagem, esses recursos logo dominaram a discussão sobre o filme, dos mais entusiastas aos mais críticos.
E com razão. “Rivais” reúne efeitos audiovisuais que na crítica de cinema costumam ser associados à forma dos videoclipes. Esse tipo de comparação parece um pouco exaustiva, principalmente quando consideramos a que extensão o cinema e a televisão incorporaram essa estética ao ponto em que ela carrega hoje em sua digital tanto do cinema quanto da música pop que a teria originado. De modo a atualizar e substituir o cansado “parece um videoclipe”, foi posta à disposição da crítica uma expressão semelhante, a “parece um TikTok”, clichê de avaliação que já nasce velho pelos mesmos motivos que fragilizaram aquele de onde este deriva.
Há uma ansiedade nessas expressões com um cinema que deixa de ser cinema, como se a linguagem cinematográfica tivesse uma mesma origem ou propusesse algo como um conjunto estável de ideais formais. Nem uma coisa nem outra, no entanto, encontra respaldo numa História meticulosamente analisada dessa linguagem. A rede que envolve as formas pop de “Rivais” – e de muitos outros filmes que se viram vítimas de acusações semelhantes desde “Corra, Lola, Corra” (dir. Tom Tykwer, 1998) – e qualquer tentativa de lidar com uma fidelidade ou buscar um cerne da linguagem do cinema se complica quando consideramos a operação desses efeitos audiovisuais dentro de um domínio das atrações.
O conceito de cinema de atrações é pelo menos tão antigo quanto a filmografia do cineasta soviético Sergei Eisenstein na década de 1920, entusiasta do teatro de atrações e dos seus efeitos sensíveis no espectador, o que Eisenstein buscou reproduzir no seu cinema. Décadas depois, o historiador Tom Gunning propõe uma releitura da História do Cinema ao recusar a lógica evolucionista segundo a qual a linguagem estava destinada ao filme narrativo de ficção à semelhança do romance moderno. O que Gunning revela em sua pesquisa é, no lugar de um trajeto evolutivo, uma ruptura, em que o cinema narrativo teve que se desfazer de uma estética das atrações que orientava a maior parte dos filmes nas primeiras décadas do cinema: produções que minimizam a função da narrativa na linguagem e priorizam o uso da forma fílmica para produzir respostas sensíveis como choque, deslumbre e encanto. O autor também sugere que há uma sobrevivência do cinema de atrações no cinema narrativo, principalmente em um cinema de gênero que privilegia momentos não narrativos de intensidade (como o musical ou o filme de ação).
Quando Gunning fala dessa sobrevivência, no entanto, ele parece tratar dessas novas atrações como permanências secundárias dentro de um cinema narrativo que tomou para si a razão de ser do cinema. Observando um filme de ação padrão, por exemplo, é possível ver em que se localiza esse entendimento. Sequências de ação em qualquer filme “Velozes e Furiosos” oferecem um conjunto atraente de efeitos de montagem, trilha e produção sonora nas suas espetaculosas cenas que excedem a função narrativa ao mobilizar espectadores de cinema a partir do prazer audiovisual pelo ritmo e forma da máquina cinematográfica, mas elas mesmas estão contidas em uma obra narrativa que, fora das sequências mencionadas, seguem um padrão do filme narrativo e possuem de pouca a nenhuma identidade formal.
Justiça seja feita, há um bom número de filmes que, desde a consolidação do cinema de ação como gênero atraente para o público de audiovisual, mergulham nas formas e ritmos do excesso, choque e atrações a cada cena, sequência e plano. Esse é o caso de “Encurralado” (dir. Steven Spielberg, 1971), “Speed Racer” (dir. Lana e Lilly Wachowski, 2008) e a maior parte de franquias como “Mad Max” e “John Wick”. No entanto, além desses filmes despontarem como uma minoria mesmo dentro de seu próprio gênero, esse tipo de formalização tende a se restringir ao filme de ação.
Em certo sentido, o uso do esporte (no caso, o tênis) em “Rivais” funciona como um correspondente da ação neste drama para a operação formal das atrações. É dentro da partida de tênis, afinal, que a inventividade de planos, música e cortes do filme fica mais aparente, ainda que não se restrinja de forma alguma a esses momentos. Na verdade, uma vez que o filme começa dentro da partida de tênis que é o seu grande ponto climático – e, num jogo de idas e vindas pontuado quase sempre por ela, vai desdobrando a trama que nos leva até esse momento –, parece que a forma da partida extrapola o jogo como um número de ação e vai se esparramando através do filme inteiro.
Nesse formato, nem mesmo os lapsos temporais são lineares. Há pelo menos três blocos temporais distintos que aparecem nos primeiros 30 minutos do filme e se dirigem ao presente. O primeiro é o presente maximizado do filme: a partida final de tênis de onde todas as outras temporalidades se ramificam e são contidas dentro dela. Nada escapa a esse presente maior, à imediaticidade do jogo que nele se encena e a sua temporalidade estendida, desdobrada em outras temporalidades semeadas a partir da relação de confronto triangular da cena, de três pontos de vista em disputa: o dos dois jogadores – Art (Mike Faist) e Patrick (Josh O’Connor) – em lados diferentes da quadra e o de Tashi Donaldson (Zendaya), que acompanha o jogo da arquibancada. Na encenação da partida (especialmente na maneira como ela é montada no filme), o papel de Tashi não é meramente de observadora. Ao insistir em capturar a sua posição intermediária na quadra, o diretor Luca Guadagnino dá ao olhar e postura de Zendaya uma terceira raquete. Ela é, assim, parte integrante dessa partida a três, a única partida de tênis com que o filme realmente se importa.
A perspectiva triangular do filme também é reiterada em outras de suas sequências. A mais significativa delas é provavelmente a que os tenistas, ainda jovens universitários, recebem Tashi em seu dormitório. Guadagnino, que até este ponto dá ênfase de enquadramento e montagem a qualquer troca corporal entre os personagens que pudesse ser lida como sensual – efetivamente, portanto, realizando essa leitura a partir da forma do filme (penso aqui, por exemplo, no corte que faz questão de detalhar o aperto de Patrick na coxa de Art durante um momento tenso do jogo de Tashi, quando eles a veem pessoalmente pela primeira vez) –, lida nesse caso com as tensões sensuais tomando a própria linguagem dos personagens na cena, e não apenas irrompendo na vida deles.
A sequência começa por um diálogo a três em que Tashi questiona Art e Patrick sobre a relação entre eles, se eles já haviam se interessado pela mesma pessoa antes e também se eles já haviam se relacionado sexualmente entre eles mesmos. Nesse momento, as escolhas de enquadramento de Guadagnino evitam o efeito mais presente no resto do filme de interrupção do quadro geral para o detalhe. A sensualidade e a fisicalidade não são evidenciadas pela direção, mas pelos atores em cena, que, com suas poses, aproximações, encolhimentos, apalpadas e toques em seus próprios corpos revelam os desejos, hesitações e ímpetos sexuais latentes na cena.
É interessante que, quando uma cena de sexo de função climática é enfim encenada nesse filme já tomado por tensões e interações sexuais, ele faça a opção por ferramentas cênicas tão distintas do resto. Quando Patrick e Tashi transam reclinados sobre um carro em meio a uma tempestade de vento, a cena adota uma forma de slow motion, é acompanhada por um coro de Ano-Novo na trilha sonora e mergulha nos efeitos visuais excessivos da ventania. Vejo dois caminhos de leitura para essa escolha de encenação. Alguém mais desconfiado com o filme poderia reconhecer nisso só mais um caso do que a pesquisadora Linda Williams nomeou “musical sexual interlude”, que é a forma dominante das cenas de sexo no cinema hollywoodiano, em que o acontecimento do sexo nos filmes, até como uma forma de escapar dele, da sua fisicalidade, do constrangimento em torno dele, toma a forma de um número musical. Outra leitura mais generosa com o filme, e devo dizer que é o meu caso, pode pensar nessa sequência como elaborando um conjunto de excessos orgásticos para um filme tomado de preliminares.
Essa leitura tem uma fragilidade, no entanto. É que “Rivais” tem um segundo orgasmo, bem mais efetivo e coerente com a linguagem sensual do filme, que é o encerramento (ou encerramento em cena) da partida de tênis. A partida a três alcança sem momento climático com a aproximação dos dois jogadores para a rede, lances cada vez mais curtos da bola entre as raquetes, até que Art, em um salto, lança a si mesmo para os braços de Patrick, que o abraça. Da arquibancada, o rosto em tensão acumulada de Tashi grita “Come on!” e cede, enfim, essa tensão a uma expressão de deleite e prazer. Esse outro gozo, articulado na linguagem e nas suas metáforas, faz do anterior, mais literal, um exercício mais esdrúxulo de estilo. Ele também revela como “Rivais” trabalha a sexualidade e o esporte dentro de uma mesma forma das atrações, compreendendo a função mais sensual, de envolvimento corpóreo, de prazer físico, das atrações no cinema. Essa é a grande conquista formal do filme e o motivo porque me coloco entre os seus entusiastas.
“Rivais” está disponível para streaming na Prime Video.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.