FUNDAMENTALISMO CRISTÃO

Primeira ameaça ao STF depois do atentado a bomba partiu da extrema direita católica - por Mauro Lopes

Uma pistola, um Catecismo da Igreja Católica e um tratado de devoção mariana: as armas da extrema direita católica contra o STF. Uma aliança teologicamente impensável, a do fundamentalismo católico com seu equivalente evangélico

Foto que acompanhou email com ameaças ao STF.Créditos: Reprodução
Escrito en OPINIÃO el

Poucas horas depois do atentado a bomba cometido por Francisco Wanderley Luiz na noite de quarta-feira (13), o Supremo Tribunal Federal (STF) recebeu um e-mail com uma ameaça direta. A informação foi divulgada pelo diretor-geral da Polícia Federal (PF), Andrei Rodrigues, na manhã desta quinta (14). O autor ou autores da mensagem ameaçadora citaram diretamente o ataque de Francisco Wanderley Luiz, afirmaram que há uma luta contra o Supremo, e que não haverá descanso até que a Suprema Corte brasileira seja eliminada.

A mensagem foi acompanhada de uma foto, esta:


Na imagem, três peças: uma pistola, para não deixar dúvida quanto a que tipo de eliminação se pretende, e dois livros: o Catecismo da Igreja Católica, na edição de 1992, e uma edição do “Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem”, escrito pelo padre francês Luís Maria Grignion de Montfort no início do século 18.

A ameaça deve ser levada a sério e convida os setores progressistas e aesquerda a uma reflexão.

Em geral, demonizamos os evangélicos fundamentalistas. Talvez por ser este um país de tradição católica, talvez pela memória dos tempos da Teologia da Libertação, fundamental na resistência à ditadura e na formação do PT, há condescendência ou mesmo ignorância em relação ao fundamentalismo católico, à extrema direita católica, tão articulada e talvez mais agressiva e violenta que a extrema direita evangélica. 

Como católico, asseguro: o ambiente na extrema direita católica é tão ou mais radical que entre seus parceiros evangélicos. São três “armas de combate” na foto que acompanhou o email com ameaças ao STF, o Catecismo da Igreja Católica e um livro-referência de devoção mariana. 

Ambos os textos remontam à contrarreforma católica, uma reação à reforma protestante iniciada em 1517 por Lutero e que levou milhões de católicos a abandonarem a igreja. Os protestantes, para que se tenha uma ideia da força avassaladora do movimento, tornaram-se maioria entre os cristãos em todo o norte da Europa ainda no século 16. A reação católica foi organizada a partir do Concílio de Trento (1545-1563), que acabou conduzindo a igreja de Roma a posições cada vez mais conservadoras. 

O Catecismo da Igreja Católica, publicado três anos depois do fim do concílio, tornou-se uma peça-chave na história do catolicismo conservador através dos séculos. Para os católicos de extrema direita, ele é equiparado à Bíblia -uma reação a um dos cinco motes centrais da reforma protestante, o lema  “sola scriptura” (somente a Bíblia). O texto foi reformado apenas em 1992, no papado do ultraconservador Karol Wojtyla, João Paulo II, que manteve os eixos centrais do texto original. Veja:

 

O “Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem” foi escrito pelo padre francês Luís Maria Grignion de Montfort em 1715 no espírito da reação à reforma protestante e a um movimento surgido na França no interior do catolicismo, o jansenismo, com muitos pontos de contato com as ideias de Lutero. Um dos temas comuns à reforma e ao jansenismo foi a recusa a considerar a mãe de Jesus, Maria, como intermediária na relação entre os cristãos e Jesus Cristo. É outro dos motes do protestantismo: “solus Christus” (somente Cristo). A devoção extremada a Maria (Nossa Senhora) foi, talvez, o grande movimento conservador que pautou o catolicismo a partir dos séculos 16-17 e tornou-se a pedra de toque da extrema direita católica nos século 20 e 21. Veja:

A devoção ao Catecismo e a Maria são constitutivos de todos os grupos de ultraconservadores (de extrema direita) católicos, verdadeiros “símbolos da fé” dos novos cruzados. Por isso, são eles que acompanham a pistola na mensagem. 

Dois dos grupos radicais com maior visibilidade no país são a TFP (Tradição, Família e Propriedade), de grande expressão nos anos 1960 e impulsionadora de golpe de 1964, superada pelos Arautos do Evangelho, uma cisão de 1999. Há dezenas e dezenas de grupos de extrema direita católicos espalhados pelas dioceses e paróquias do país, muitos deles vinculados ou estimulados por bispos e sobretudo padres. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a entidade dos bispos brasileiros, que teve papel importante no impulso à Teologia da Libertação, assiste impassível e impotente ao crescimento acelerado da extrema direita católica. 

O caso Opus Dei 

Além dos grupos nacionais, há pelo menos um grupo internacional com forte atuação no país, talvez a principal corrente ultraconservadora católica global, a Opus Dei, presente em 95 países.

A organização foi fundada na Espanha em 1928, adquiriu um poder incontrastável no país durante o franquismo e, de lá, expandiu-se para o mundo, tornando-se influente no Vaticano. Os textos de seu fundador, o padre Josemaria Escrivá de Balaguer, o Catecismo e a devoção a Maria são o tripé teológico-ideológico do movimento. Não é folclore, como muitos na esquerda imaginam: de fato, uma das prescrições básicas do movimento é a “mortificação corporal”. O uso do cilício é fortemente incentivado pela direção da Opus Dei para seus integrantes. Cilício é uma pequena corrente ou cinturão metálico dotado de pequenas pontas que se ata firmemente às coxas, às costas ou às axilas. O objetivo é “aproximar o cristão do sofrimento que Jesus sofreu na cruz”.

A Opus Dei foi guindada à condição de “prelazia pessoal do papa” por João Paulo II, conferindo a ela autonomia e independência únicas na Igreja. A condição foi revogada pelo Papa Francisco em 2022. Francisco, o argentino Jorge Mario Bergoglio, é, por sinal, um papa em minoria flagrante na Igreja Católica, hoje hegemonizada pela aliança entre conservadores e ultraconservadores (algo como a aliança entre o Centrão e o bolsonarismo, na política brasileira). Grupos de extrema direita mantêm grupos de oração pela morte de Francisco que, quase certamente, será sucedido por um equivalente a Wojtyla.

Em 2021, a Opus Dei foi denunciada por 43 mulheres à Justiça argentina e ao Vaticano por terem sido mantidas em cárcere privado e submetidas a trabalho análogo à escravidão como trabalhadoras domésticas nas sedes da organização anos a fio. Até hoje o caso está empacado no Vaticano e, finalmente, em outubro passado, quatro líderes da Opus Dei foram denunciados pela Justiça Federal argentina

No Judiciário, qualquer ação contra a Opus Dei caminha a passos de tartaruga -ou não caminha- pela rede de influência da organização nas instituições tanto na Argentina como no Brasil. 

Esta é uma questão quanto aos ataques e atentado dos fundamentalistas/extrema direita cristã no Brasil. A rede de influência dos grupos evangélicos e católicos é enorme e poderosa. 

Em novembro de 2023, escrevi na Fórum o artigo-reportagem “Ultraconservador, Paulo Gonet defendeu a ditadura, a Lava Jato, conciliou com Bolsonaro e foi contra as cotas” -pouco depois ele foi indicado pelo presidente Lula à PGR. Ele nega ser membro da Opus Dei, informação corrente nos bastidores do poder em Brasília, apesar de reconhecer ser um católico ultraconservador. É unha e carne com Ives Gandra Filho, este sim um membro assumido da Opus Dei, bolsonarista raiz e contrário a todos os direitos dos trabalhadores. Como ele se comportará se chegarem à PGR indiciamentos de católicos de extrema direita por ataques à democracia, como este ou estes que agora ameaçam o STF? É uma interrogação pertinente. A propósito, o vice-presidente Geraldo Alckmin tem ligações históricas com a Opus Dei.

Católicos e evangélicos e novos atentados

Uma breve nota sobre ideologia e teologia. 

É curioso que em dois universos tão antagônicos do ponto de vista teológico, católicos e evangélicos, milhares sejam aliados na luta política no país contra a democracia e pela volta da ditadura. 

Para além da teologia, está a ideologia. A extrema direita une os dois mundos. 

Como observou-me o amigo reverendo anglicano Eduardo Henrique, estamos diante de "uma nova cruzada com seu apelo ao martírio". Se a mortificação corporal é típica da Opus Dei e outros segmentos minoritários no catolicismo, a ideia do "martírio" (ir à morte em defesa da fé) embala o sonho de milhares e milhares de cristãos, evangélicos e católicos, especialmente os fundamentalistas. Ou seja: haverá mais atentados, embrulhados na retórica da "defesa da fé cristã conta os ímpios, os comunistas".