Colonização da educação
O grande professor de literatura, Alfredo Bosi, dizia que “as palavras cultura, culto e colonização derivam do mesmo verbo latino colo, cujo particípio passado é cultus e o particípio futuro é culturus”, e que colo é a matriz de colônia enquanto espaço que se está ocupando, terra ou povo que se pode trabalhar e sujeitar”.[1] Ao longo da história vemos a educação sendo sujeitada a outros poderes, e no mundo atual, com o objetivo de sujeitar a lógica de trabalho capitalista.
A educação moderna nasceu colonizada pela religião. Os jesuítas podem ser considerados o símbolo desse período. Além de colonizada, a educação era usada para colonizar. Catequizar os índios… Os filósofos iluministas protestaram, até que a educação passou a ser colonizada pelo Estado.
Os ideais de formar um homem cosmopolita se tornou utópico e os mecanismos vinculados ao projeto de construção da identidade nacional tornaram-se o principal objetivo da educação para, assim, promover o que Aníbal Quijano chamou de “colonialidad del poder”, “que compreende a tentativa forçosa das elites independentes latino-americanas em introduzir um modelo de Estado-nação moderno europeu nestas terras”.[2] A educação, portanto, foi colonizada para servir a uma nova espécie de colonização.
Hoje, a educação é colonizada pela economia e, com o mesmo objetivo de sempre, “os poderes tendem a ver a escola como o meio de conservar e ampliar seu domínio sobre a sociedade e sobre as novas gerações”.[3]
A colonização neoliberal da educação
A educação não nasceu tendo como finalidade o trabalho. Inclusive, eram coisas opostas. O povo não se interessava pela educação porque a cultura letrada de nada servia para o trabalho.[4] Mas a evolução do capitalismo exigiu que a classe operária trabalhasse para atender aos interesses dos capitalistas. Foi assim que “o taylorismo-fordismo teve como meta principal a usurpação pela gerência capitalista dos saberes-fazeres historicamente elaborados e preservados pela classe trabalhadora, com o intuito de reformulá-los e impô-los como normas pétreas aos/às trabalhadores/as, dentro da unilateralidade e da unidimensionalidade típicas do trabalho abstrato e alienado”.[5]
A educação nunca consegue atingir o máximo de seu potencial, pois é limitada pelos interesses de forças externas. Antes a religião, depois o Estado-nação e, finalmente, os objetivos da economia capitalista. A colonização da educação é um projeto que busca impor os interesses dos opressores sobre os oprimidos, transformando a consciência destes em “hospedeira” da consciência opressora. Como explica Paulo Freire, o objetivo é a permanência dos oprimidos “em seu estado de ‘imersão’ em que, de modo geral, se encontram impotentes em face da realidade opressora, como ‘situação limite’ que lhes parece intransponível”.[6]
O desenvolvimento da exploração capitalista tem “caminhado de mãos dadas com a doutrinação da esmagadora maioria das pessoas com os valores da ordem social do capital como ordem natural inalterável, nacionalizada e justificada pelos ideólogos mais sofisticados do sistema em nome da ‘objetividade científica’ e da ‘neutralidade de valor’”.[7] Essa ideia de que a escola deve ser neutra de valores (em nome de uma suposta liberdade), focando apenas no utilitarismo, na verdade, submete a escola aos valores do mercado, promovendo a subordinação passiva dos indivíduos à sociabilidade imposta pelo capital.
Thomas Meyer e Lee Hinchman, grandes estudiosos da mídia, explicam como o filósofo Jurgen Habermas inseriu e justificou o conceito de colonização de um domínio da sociedade por outro no contexto de sua teoria da ação comunicativa. Os problemas da vida cotidiana (“mundo da vida”) “que deveriam ou poderiam ser resolvidos por meio de um consenso agora estão sendo resolvidos cada vez mais pelo poder e pelo dinheiro, estamos autorizados a falar em uma colonização de uma esfera social de ação pelas regras de uma outra devido ao fato de suas regras originais terem sido ou totalmente abolidas por este segundo conjunto de regras ou se tornando dependentes dele”.[8]
A educação se torna um investimento e a prática pedagógica está submetida à lógica da concorrência, a mesma que fomenta a competição entre as empresas. O sistema de notas é exemplo disso. “Ainda hoje, a instituição escolar dá a entender que a nota é uma medida de valor do aluno uma vez que ela desempenha um papel de comparação, seleção e hierarquização entre alunos, com o objetivo de identificar uma ‘elite’ supostamente legítima devido aos seus resultados ‘objetivos’ porquanto quantitativos”.[9]
A escola vem se tornando uma empresa. Não apenas os alunos são treinados para aprender os “valores” do mercado, os professores também estão submetidos à produtividade empresarial, de modo que “a lógica de gestão educacional com estabelecimento de metas, avaliação sistemática do rendimento escolar, responsabilização individual pelo sucesso ou fracasso ampliou o domínio dos resultados sobre o processo, reduzindo o trabalho educativo ao produto, num movimento fetichista bastante conhecido”.[10] O professor passou a produzir mercadorias. “A educação tornou-se, então, também um ‘investimento’, um negócio. E a teoria do capital humano acaba por equalizar o vendedor e o comprador de força de trabalho como meros comerciantes de uma mercadoria em comum”.[11]
A educação orientada para a satisfação das necessidades geradas pela lógica da economia capitalista, “acarreta um gigantesco desperdício da capacidade humana de trabalho e dos recursos naturais”.[12] Sendo assim, à educação é negada sua capacidade de atingir o seu pleno potencial. É preciso, portanto, “pensar as instituições de ensino como contrapoderes, no sentido preciso de que devem garantir a independência do conhecimento em relação a todos os poderes sociais, econômicos, religiosos ou políticos e assegurar o primado da observação dos fatos e da argumentação racional, em conformidade com os objetivos revolucionários da Comuna”, como colocam Christian Laval e Francis Vergne inspirados no projeto da Comuna de Paris.[13]
A repugnante fábrica de Marçaiszinhos
A economia colonizou a educação para cultuar o capital e transmitir uma cultura que alimenta e reproduz as relações sociais capitalistas baseadas na concorrência e na competição. A encenação política de Pablo Marçal, na disputa pela prefeitura de São Paulo, é uma marca clara da colonização neoliberal da educação. Em seu depoimento que determina as condições de apoio ao atual prefeito da cidade, o coach declara: “Se acontecer um milagre de Silas se retratar, Bolsonaro, Eduardo, Nunes e o Tarcísio, aí eu entrego um documento de que eu quero educação financeira, inteligência emocional, empresarização, profissões do futuro, tecnologias e escolas olímpicas”.[14] Uma proposta que se conecta ao projeto educacional de Nunes, como mostra a matéria do Infomoney: “O programa de governo do emedebista fala também na implementação de polos de ensino de empreendedorismo e trabalho em 58 Centros Educacionais Unificados (CEUs)”.[15] Só faltou adotarem a linha de Ronald Reagan, ícone do neoliberalismo estadunidense, que ia às escolas, sentava num banco escolar em sala de aula, encenava conversas com professores e alunos, parecendo que se importava com a educação, mas, nos bastidores, reduzia drasticamente o orçamento destinado a ela.[16]
Colonizar a educação com as regras da economia neoliberal não irá melhorar o sistema educacional. Pelo contrário, esse projeto procura submeter os jovens a um mundo ordenado pela concorrência, pelo vale-tudo para vencer, como bem mostrou a campanha repugnante do candidato do PRTB.
O objetivo da educação é formar cidadãos que prezam pela ética cidadã e não novos coaches trogloditas que incentivam o caos social baseado na competição pelo sucesso pessoal. Será que a população (por enquanto a de São Paulo, mas em 2026 pode ser a do Brasil inteiro!) quer de fato que a escola se transforme em uma fábrica de Marçaiszinhos? Pelo amor de Deus….
[1] BOSI, A. Dialética da colonização. São Paulo: Cia das letras, 1992, p. 11.
[2] FAGUNDES, R. Herdeiros da facúndia. Rio de Janeiro: Multifoco, 2019, p. 61.
[3] LAVAL, C. e VERGNE, F. Educação democrática. Petrópolis: Vozes, 2023, p. 39.
[4] LIMA, L. C. Aprender para ganhar, conhecer para competir. São Paulo: Cortez, 2012, p. 27.
[5] ANTUNES, R. e PINTO, G. A. A fábrica da educação. São Paulo: Cortez, 2017, p. 77.
[6] FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 39.
[7] MEZAROS, I. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 80.
[8] MEYER, T e HINCHMAN, L. Democracia midiática. São Paulo: Loyola, 2002, p. 92.
[9] LAVAL e VERGNE, p. 108.
[10] Id., p. 35.
[11] ANTUNES, R. e PINTO, G. A., p. 103.
[12] SAVIANI, D. e DUARTE, N. Conhecimento escolar e luta de classes. Campinas, SP: Autores Associados, 2021, p. 44.
[13] LAVAL, C. e VERGNE, F., p. 47.
[14] https://www.cnnbrasil.com.br/eleicoes/com-284-dos-votos-no-1o-turno-marcal-condiciona-apoio-a-nunes-a-uma-retratacao/
[15] https://www.google.com/amp/s/www.infomoney.com.br/politica/nunes-quer-ampliar-programas-existentes-e-mira-saude-educacao-e-assistencia-social/amp/
[16] MEYER, T e HINCHMAN, L., p. 106-107.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.